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Crônica desde o Donbass: O problema não é quando a morte se engana. É quando acerta

Depois da tomada de Mariupol, o controlo total de Lugansk é a mais importante vitória para as forças russas e milícias locais desde o começo da intervenção militar em fevereiro.

No centro de Gorskoe (Lugansk, ao leste de Ucrânia), centenas de pessoas juntam-se para receber ajuda alimentar.
photo_camera No centro de Gorskoe (Lugansk, ao leste de Ucrânia), centenas de pessoas juntam-se para receber ajuda alimentar.

Passam três dias desde que os homens da Brigada Prizrak conseguiram empurrar as tropas ucranianas para fora da localidade de Gorskoe mas ainda se ouvem explosões ali bem perto e voos rasantes de caças russos nos arredores. Nota-se bem que estamos no último caldeirão que resta na região de Lugansk, onde a tomada de Severodonetsk e Lysychansk, dias depois, acabaria por ser o toque de finados para Kiev. A progressão militar das forças comandadas pela Rússia pode ser, por vezes, lenta mas é consistente. 

Chegar a Gorskoe, localidade de 10 mil habitantes situada a sul de Lysychansk, não é fácil. Viajar num território em disputa implica sempre gastar mais horas nos piores caminhos, muitos deles de terra batida, maltratados pelas lagartas dos tanques e pelo peso dos carros blindados. Debaixo de um sol inclemente, atravessamos a poeira provocada pelo sobrevoo de vários helicópteros russos, a prova de que Donbass é, nos meses de verão, um inferno e não apenas por causa da guerra. 

São muitos os que em Gorkoe têm razões de queixa. Dos 10 mil habitantes, apenas 3 mil se mantiveram aqui

Quando entramos finalmente em Gorskoe debatemos qual o melhor caminho a tomar. Há quem queira ir em frente, há quem queira virar na primeira saída. Tomamos a primeira saída. Dali a pouco, recebemos a notícia de que um condutor que decidira ir em frente atravessou uma mina anti-tanque e que a viatura ficou completamente destruída. Este homem teve de ser levado para o hospital em estado muito grave. Mais um dia com vida, diria Ryszard Kapuscinski, sobre quem prefere não contar as vezes em que morte se voltou a enganar. 

"Sabem o que é isto? Fósforo branco", denuncia um vizinho.
"Sabem o que é isto? Fósforo branco", denuncia um vizinho.

 

Mas, se a vida às vezes também acerta, a morte não se engana sempre e são muitos os que em Gorkoe têm razões de queixa. Dos 10 mil habitantes, apenas 3 mil se mantiveram nesta localidade. Encerrados desde há meses em caves, reúnem-se agora em comunidade para contar tudo o que lhes aconteceu. Sem eletricidade, gás ou água canalizada, é na rua que cozinham muitas vezes em fogueiras improvisadas. Quando descobre que somos estrangeiros, de um país ocidental, uma mulher acusa-nos de sermos responsáveis pelo que ali aconteceu. Outros tentam justificar estas palavras e procurar que entendamos esta revolta que lhes corre nas veias. Enquanto isso, um homem sai de um prédio e traz-nos um saco: “Sabem o que é isto? Fósforo branco. Sabem que isto está proibido em áreas civis?” Querem falar mas não querem dar a cara, apenas denunciar o que viveram. Apontam o dedo às forças ucranianas de extrema-direita, sobretudo ao Batalhão Aidar, especialmente ativo nesta região. 

 

Mais à frente, dois vizinhos conversam entre si e aceitam responder a algumas perguntas. Ao lado, junto à fachada de uma casa, vários lança-rockets norte-americanos abandonados pelas forças ucranianas. Na lateral, “made in USA”. “Eu nasci aqui e quero viver aqui no meu país. Disseram-me para sair. E os impostos vão para a Ucrânia. Os militares [ucranianos] aproximaram-se de mim e disseram-me: ‘Não quer ir embora, então você é um separatista’. E eu respondi: ‘Não quero partir, portanto sou um separatista. Que tipo de separatista? Eu vivi aqui toda a minha vida’. Temos passaportes ucranianos. Eu paguei impostos onde? Para a Ucrânia. Para onde devo ir?”. Indignado, este reformado aponta para um prédio e recorda que uma mulher e o seu filho de 13 anos foram queimados vivos depois de um ataque com Grad. “O que nós já passámos em quatro meses…” 

No centro de Gorskoe, centenas de pessoas juntam-se para receber ajuda alimentar enquanto um dos comandantes da Brigada Prizrak, famosa por reunir milhares de combatentes civis e por se declarar anti-imperialista em 2014, explica que se trata de apoio proveniente da administração das cidades de Pervomaisk e Kirovsk: “Foram eles que nos pediram e vamos distribuir toda esta ajuda. Amanhã, vão trazer um novo lote de pão. Mas também haverá pão hoje à noite. Portanto, se possível, não vão para longe. Quem precisa de ir a uma clínica ou a um hospital, deve fazer esse pedido. Hoje e amanhã, é dia de folga na policlínica. É sábado e domingo. Mas vamos concentrar-nos na segunda-feira. Estaremos aqui e vocês venham também. Escrevam o vosso nome e morada para que saibamos onde vos encontrar. Está bem? Se tiverem dúvidas, perguntem”. 

Ali bem perto, duas mulheres tentam afastar um grupo de cães demasiado interessados no conteúdo destes sacos. É um cenário que se repete. Em geral, há matilhas de cães abandonados em muitas destas localidades que se dedicam àquilo que todos, incluindo humanos, parecem querer: sobreviver e não morrer de fome. 

É o caso de Elena, de olhar perdido, sentada num banco de jardim, ao lado de uma loja destruída. Não mora longe dali e diz que não tem ninguém porque todos partiram. “Fui deixada sozinha”. Parece não entender muito do curso da guerra porque esteve em casa o tempo todo. De repente, um avião rasga os céus sobre as nossas cabeças. Tomada pelo susto pergunta do que se trata. Mais calma, explica que a 5 de março as janelas de casa ficaram destruídas. “Fiquei nesta casa fria. A 26 de maio, fomos atingidos por outro projétil. E a 1 de maio, a vedação da casa ficou destruída. O portão derreteu. Eu estava perto da porta de casa e as minhas pernas tremiam. Olhem como ficou a escola”. 

O estabelecimento de ensino de Gorskoe está destruído.
O estabelecimento de ensino de Gorskoe está destruído.

 

E olhamos. Há uma cratera enorme em frente ao principal estabelecimento de ensino de Gorskoe. O edifício está completamente destruído. As tropas ucranianas usaram a escola como posição militar. Podemos vê-lo porque há sacos de cimento nas janelas e material bélico por todas as partes. Granadas, balas, fardamento, capacetes e uma bíblia, a que Deus, se existir parece ter ficado indiferente.

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