Passam três dias desde que os homens da Brigada Prizrak conseguiram empurrar as tropas ucranianas para fora da localidade de Gorskoe mas ainda se ouvem explosões ali bem perto e voos rasantes de caças russos nos arredores. Nota-se bem que estamos no último caldeirão que resta na região de Lugansk, onde a tomada de Severodonetsk e Lysychansk, dias depois, acabaria por ser o toque de finados para Kiev. A progressão militar das forças comandadas pela Rússia pode ser, por vezes, lenta mas é consistente.
Chegar a Gorskoe, localidade de 10 mil habitantes situada a sul de Lysychansk, não é fácil. Viajar num território em disputa implica sempre gastar mais horas nos piores caminhos, muitos deles de terra batida, maltratados pelas lagartas dos tanques e pelo peso dos carros blindados. Debaixo de um sol inclemente, atravessamos a poeira provocada pelo sobrevoo de vários helicópteros russos, a prova de que Donbass é, nos meses de verão, um inferno e não apenas por causa da guerra.
São muitos os que em Gorkoe têm razões de queixa. Dos 10 mil habitantes, apenas 3 mil se mantiveram aqui
Quando entramos finalmente em Gorskoe debatemos qual o melhor caminho a tomar. Há quem queira ir em frente, há quem queira virar na primeira saída. Tomamos a primeira saída. Dali a pouco, recebemos a notícia de que um condutor que decidira ir em frente atravessou uma mina anti-tanque e que a viatura ficou completamente destruída. Este homem teve de ser levado para o hospital em estado muito grave. Mais um dia com vida, diria Ryszard Kapuscinski, sobre quem prefere não contar as vezes em que morte se voltou a enganar.

Mas, se a vida às vezes também acerta, a morte não se engana sempre e são muitos os que em Gorkoe têm razões de queixa. Dos 10 mil habitantes, apenas 3 mil se mantiveram nesta localidade. Encerrados desde há meses em caves, reúnem-se agora em comunidade para contar tudo o que lhes aconteceu. Sem eletricidade, gás ou água canalizada, é na rua que cozinham muitas vezes em fogueiras improvisadas. Quando descobre que somos estrangeiros, de um país ocidental, uma mulher acusa-nos de sermos responsáveis pelo que ali aconteceu. Outros tentam justificar estas palavras e procurar que entendamos esta revolta que lhes corre nas veias. Enquanto isso, um homem sai de um prédio e traz-nos um saco: “Sabem o que é isto? Fósforo branco. Sabem que isto está proibido em áreas civis?” Querem falar mas não querem dar a cara, apenas denunciar o que viveram. Apontam o dedo às forças ucranianas de extrema-direita, sobretudo ao Batalhão Aidar, especialmente ativo nesta região.
Mais à frente, dois vizinhos conversam entre si e aceitam responder a algumas perguntas. Ao lado, junto à fachada de uma casa, vários lança-rockets norte-americanos abandonados pelas forças ucranianas. Na lateral, “made in USA”. “Eu nasci aqui e quero viver aqui no meu país. Disseram-me para sair. E os impostos vão para a Ucrânia. Os militares [ucranianos] aproximaram-se de mim e disseram-me: ‘Não quer ir embora, então você é um separatista’. E eu respondi: ‘Não quero partir, portanto sou um separatista. Que tipo de separatista? Eu vivi aqui toda a minha vida’. Temos passaportes ucranianos. Eu paguei impostos onde? Para a Ucrânia. Para onde devo ir?”. Indignado, este reformado aponta para um prédio e recorda que uma mulher e o seu filho de 13 anos foram queimados vivos depois de um ataque com Grad. “O que nós já passámos em quatro meses…”
No centro de Gorskoe, centenas de pessoas juntam-se para receber ajuda alimentar enquanto um dos comandantes da Brigada Prizrak, famosa por reunir milhares de combatentes civis e por se declarar anti-imperialista em 2014, explica que se trata de apoio proveniente da administração das cidades de Pervomaisk e Kirovsk: “Foram eles que nos pediram e vamos distribuir toda esta ajuda. Amanhã, vão trazer um novo lote de pão. Mas também haverá pão hoje à noite. Portanto, se possível, não vão para longe. Quem precisa de ir a uma clínica ou a um hospital, deve fazer esse pedido. Hoje e amanhã, é dia de folga na policlínica. É sábado e domingo. Mas vamos concentrar-nos na segunda-feira. Estaremos aqui e vocês venham também. Escrevam o vosso nome e morada para que saibamos onde vos encontrar. Está bem? Se tiverem dúvidas, perguntem”.
Ali bem perto, duas mulheres tentam afastar um grupo de cães demasiado interessados no conteúdo destes sacos. É um cenário que se repete. Em geral, há matilhas de cães abandonados em muitas destas localidades que se dedicam àquilo que todos, incluindo humanos, parecem querer: sobreviver e não morrer de fome.
É o caso de Elena, de olhar perdido, sentada num banco de jardim, ao lado de uma loja destruída. Não mora longe dali e diz que não tem ninguém porque todos partiram. “Fui deixada sozinha”. Parece não entender muito do curso da guerra porque esteve em casa o tempo todo. De repente, um avião rasga os céus sobre as nossas cabeças. Tomada pelo susto pergunta do que se trata. Mais calma, explica que a 5 de março as janelas de casa ficaram destruídas. “Fiquei nesta casa fria. A 26 de maio, fomos atingidos por outro projétil. E a 1 de maio, a vedação da casa ficou destruída. O portão derreteu. Eu estava perto da porta de casa e as minhas pernas tremiam. Olhem como ficou a escola”.

E olhamos. Há uma cratera enorme em frente ao principal estabelecimento de ensino de Gorskoe. O edifício está completamente destruído. As tropas ucranianas usaram a escola como posição militar. Podemos vê-lo porque há sacos de cimento nas janelas e material bélico por todas as partes. Granadas, balas, fardamento, capacetes e uma bíblia, a que Deus, se existir parece ter ficado indiferente.