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Crônica desde o Donbass: Donetsk. Civis na mira das bombas

Do coração da cidade de Donetsk, na Praça Lénine, à Universitetskaya são cerca de dez minutos a pé. É nesta avenida que testemunhamos a destruição provocada pela artilharia ucraniana uma hora antes numa das faculdades. A fachada está negra e as janelas estão destruídas. Felizmente, os alunos estudam para os últimos exames e o ensino é à distância.
O Centro de Traumatologia de Donetsk recebe a maioria das pessoas feridas na guerra nesta zona. (Foto: Bruno Carvalho)
photo_camera O Centro de Traumatologia de Donetsk recebe a maioria das pessoas feridas na guerra nesta zona. (Foto: Bruno Carvalho)

Apesar de ser dia da semana, ali bem perto, num extenso parque verde, dezenas de pessoas fazem piqueniques e há até quem nade num poluído lago para combater o calor que se faz sentir. De repente, ouvimos o assobio de rockets e várias explosões seguidas. Tão perto que não conseguimos sair dali. Estamos presos entre um lago, onde o mesmo homem nada despreocupadamente, e o centro da cidade debaixo de um pesado bombardeamento que acabaria por durar mais de três horas.

Há um silêncio pesado como chumbo, só interrompido pela sirene das ambulâncias, quando conseguimos atravessar a cidade envolta numa estranha névoa, resultado de vários incêndios. Não há um único carro a circular apesar de ser a hora de saída do trabalho. Um homem atravessa a artéria central de Artem a correr e uma mulher com sacos nas mãos esconde-se dentro de uma loja. É este o retrato do mais violento dos ataques sobre a maior das cidades da região do Donbass em muitos anos.

"Os ferimentos são mais graves do que em 2014 e 2015 porque os combates são mais agressivos"

Nos dias seguintes, visitamos o Centro de Traumatologia da República Popular de Donetsk, localizado numa zona cêntrica da cidade. Este hospital com capacidade para 380 camas recebe a maioria dos feridos deste conflito. Segundo Vadim Onopriyenko, diretor assistente para o trabalho cirúrgico, os funcionários deste serviço já trataram mais de 1.000 pacientes relacionados com a guerra.

"Os ferimentos são mais graves do que em 2014 e 2015 porque os combates são mais agressivos. Como pode ver por si próprio, agora todos os bairros estão a ser bombardeados. Tratamos os feridos de toda a cidade. No sábado, durante o bombardeamento massivo de Donetsk, recebemos 15 pessoas. Infelizmente, não foi possível salvar duas delas. Tinham ferimentos muito graves", descreve, explicando que as "armas mais pesadas fornecidas pela União Europeia" provocam mais danos entre a população civil.

Até ao momento, desde fevereiro, receberam cerca de 100 crianças. Também cerca de 30 prisioneiros de guerra ucranianos que, segundo Vadim Onopriyenko, foram tratados como qualquer outro paciente neste hospital que já foi atingido várias vezes. "Para um médico, não há diferença quando tem um paciente na mesa de operações. O médico deve prestar a assistência adequada, competente, e concentrar todos os seus conhecimentos, a fim de proporcionar ao paciente cuidados médicos competentes e qualificados", afirma.

De acordo com este médico, as feridas estão, sobretudo, relacionadas com lesões no sistema músculo-esquelético. Questionado sobre quem é responsável pelos bombardeamentos, se a artilharia russa ou ucraniana, enerva-se e pede que pensemos "com a cabeça". "Pense no que está a dizer. Acha que a Rússia vai disparar sobre os seus próprios cidadãos?".

Testemunhos desde o hospital

Depois deste momento de tensão, aceita que entrevistemos alguns pacientes mas deixa um aviso. Muitos deles foram atacados com armas da NATO e podem reagir mal se souberem que somos de um país membro da Aliança Atlântica. Alguns recusam, outros aceitam testemunhar o que viveram.

À nossa frente, deitada numa cama, está Olga Adjigay, de 40 anos. Explica que estava a entrar numa loja quando ficou debaixo de fogo de granadas de morteiro. "Atingiram-me imediatamente nas pernas e caí. Não perdi a consciência durante algum tempo. Rastejei até aos degraus da loja. Subi. Lá, encostei-me à bancada e comecei a perder a consciência. Vi os meus pés. Estavam com mau aspecto, envoltos em sangue. Comecei a perder a consciência. Então, um tipo aproximou-se de mim. Fez um garrote numa das minhas pernas com uma fita. Não havia nada para fazer o mesmo na outra perna. Esperámos muito tempo por uma ambulância. Quando chegou e me levou para o hospital, já tinha perdido a consciência". Ficou sem uma perna.

Olga Adjigay estava a entrar numa loja quando ficou baixo de fogo. (Foto: Bruno Carvalho)
Olga Adjigay estava a entrar numa loja quando ficou baixo de fogo. (Foto: Bruno Carvalho)

Com três cirurgias pela frente, tenta ganhar forças para enfrentar um futuro com dois filhos. Diz que é uma "guerra sem sentido" e aponta o dedo à Ucrânia. Para Olga, a presença do exército russo é fundamental para "defender a região de Donetsk" e "proteger" a população.

Uns quartos adiante, encontramos Alexander Kucherenko. O panorama é terrível. Este homem de 61 anos tem os membros engessados e a pele queimada. "Estava no meu local de trabalho. Nesse momento, um projétil caiu. Trabalho numa empresa de abastecimento de água, numa oficina", descreve. Uma explosão inesperada atirou-o para o chão e desde então tudo mudou.

Alex Kucherenko no Centro de Traumatologia de Donetsk. (Foto: Bruno Carvalho)
Alex Kucherenko no Centro de Traumatologia de Donetsk. (Foto: Bruno Carvalho)

"Perdi um olho. Não tenho um olho. Não pode ser recuperado. Posso perder a perna esquerda. Não sei se a vão salvar ou não. Há que tentar. Os braços e vários ossos do corpo estão partidos. Tudo está queimado. Havia algum tipo de substância inflamável. A minha perna ficou esmagada. Mal consegui sair da oficina. Caí e chamaram uma ambulância. Eles ajudaram-me. Os que estavam perto de mim chamaram uma ambulância e puseram-me um torniquete", é assim que narra a maior tragédia da sua vida.

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