Um conto de duas comissões de inquérito

Duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) no poder legislativo federal vêm movimentando a vida política brasileira. Uma delas investiga os atos golpistas realizados em 8 de janeiro de 2023, quando grupos organizados de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes em Brasília, com aparente conivência das autoridades policiais e planejamento de altas esferas, e a segunda investiga outra coisa. Tem o nome fantasia de "CPI do MST"™, ou seja, teria como objeto as ocupações de propriedades privadas e públicas pelo Movimento de Trabalhadores Sem Terra, fundado nos anos 80 em defesa da reforma agrária. Os proponentes da junta alegam que existe uma vinculação entre a organização e o governo Lula. Ambas investigam, grossíssimo modo, o financiamento a movimentos populares. Uma nasceu em resposta à outra, ou como um espelho, mas a primeira está em ponto de ebulição, enquanto a CPI do MST definha miseravelmente. Em articulação com a presidência, a Câmara de deputados mudou a composição do colegiado, que já conta com uma maioria simpática ao governo. O inquérito sobre o golpe está nos calcanhares de Jair Bolsonaro. Há evidências da atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no 2º turno das eleições de 2022 para dificultar a votação em zonas onde Lula obteve mais de 75% dos votos no 1º turno. O então diretor da PRF Silvinei Vasques foi preso em 9/8, unindo-se ao ex-ministro da Justiça e ao Ajudante de Ordens do ex-presidente. Na CPI, os acusadores trabalham com a teoria de que os ataques de 8/1 foram o ato final de uma mobilização para depor Lula da Silva, iniciada no 2º turno das eleições do ano passado. Trata-se de uma linha do tempo muito questionável –Quando tudo começou? Quando terminará?– mas necessária para as peças jurídicas. Já a CPI do MST, que se propunha a "investigar a atuação do grupo", nunca especificou as ocorrências que seriam averiguadas. Os deputados de esquerda tentaram ampliar a pauta para violência no campo em geral, mas suas demandas foram sistematicamente negadas. Os donos da pauta conservadora, por sua vez, proporcionaram um show de horrores a cada aparição, desde a invasão de casas de assentados ligados a entidades alheias ao MST a falas grotescamente misóginas contra deputadas da esquerda. Quiseram um palanque e, neste palanque, mostraram sua face. Os espelhos são artefatos misteriosos, porque o objeto representado sobre o vidro não está ali, onde ele é visto, mas estranhamente também está. Como a imagem especular só pode existir na presença do objeto que ela torna ausente, o espelho expressa uma noção radical de alteridade, aspecto central na constituição de qualquer sujeito, grupo ou cultura. Há evidências da atuação da Polícia no 2º turno das eleições para dificultar a votação em zonas onde Lula obteve mais de 75% dos votos Os representantes do Bolsonarismo se esforçam por permanecer em cena simulando uma associação especular com o atual presidente, e veremos essa performance em cores vivas nas campanhas municipais de 2024. A depender do desempenho dos atores, essa eleição poderá significar mais um passo importante no exorcismo nacional da figura de Bolsonaro. Vida que segue À margem desse picadeiro, sempre é bom lembrar algumas informações concretas, já que nem tudo é narrativa. Concretamente, há vagalumes piscando no meio do túnel. A inflação caiu para o menor patamar em três anos e o desemprego chegou a 8%. Duas agências de classificação de risco (Fitch e DBRS) elevaram a nota do Brasil, relatando avanços como a reforma tributária, a votação do arcabouço fiscal e um "desempenho macroeconômico e fiscal melhor que o esperado". Com relação ao PIB, a projeção atual do mercado indica um crescimento de 2,24% em 2023. Nos dias 8 e 9 de agosto, no norte do Brasil, aconteceu a Cúpula da Amazônia com a presença de chefes de Estado dos países-membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). A Declaração de Belém apresenta medidas para evitar a devastação do bioma e delineia a intenção de posicionamento em bloco em instâncias globais. O texto também traz um recado claro à União Europeia, no contexto das negociações para o acordo com o Mercosul, ao criticar a conexão unilateral entre barreiras comerciais e medidas ambientais. No bom português de Lula da Silva, o raciocínio da Comissão Europeia deve ser invertido: "Não é o Brasil, a Colômbia ou a Venezuela que precisam de dinheiro. É a natureza, que o desenvolvimento industrial ao longo de 200 anos poluiu, que está precisando. Que eles [os países ricos] paguem sua parte agora para a gente recompor parte daquilo que foi estragado". Como no espelho.