Análise

Quando modernizar o público é privatizá-lo

Borxa Colmenero, advogado e investigador no Espaço Clara Corbelhe.
A privatização dos serviços públicos constitui um dos fenómenos com maior transcendência do auge da governança neoliberal. (Ilustraçom: Álex Rozados)
photo_camera A privatização dos serviços públicos constitui um dos fenómenos com maior transcendência do auge da governança neoliberal. (Ilustraçom: Álex Rozados)

A saída de Nuñez Feijóo da presidência do executivo autonómico tem colocado o foco da crítica nalguns dos aspetos mais polémicos da sua governança. Entre eles, não há dúvida, têm destacado as privatizações realizadas em importantes serviços públicos. Neste sentido, poucos temas têm concitado tanta unanimidade na sociedade galega, desde profissionais afetadas até cidadania, como a oposição ao processo de privatização do sistema sanitário -destacando a aprovação da Lei 8/21 de modificação da Lei 8/08 de Saúde de Galiza- que tem cedido importantíssimos âmbitos da gestão clínica ao mundo empresarial.

Com certeza, a privatização dos serviços públicos constitui um dos fenómenos com maior transcendência do auge da governança neoliberal. Assim, multidão de serviços municipais e autonómicos absolutamente centrais para a persistência de um mínimo assistencialismo na Galiza e no conjunto do estado, tais como serviços de atendimento domiciliar, pontos de cuidados infantis, cantinas escolares, lares de idosos etc., saem continuamente a concurso sob critérios e pregos de adjudicação fundamentalmente economicistas.

As administrações são sempre as titulares do serviço e em nenhum caso são externalizáveis aquelas funções que constituem um exercício da autoridade

A principal contestação a este fenómeno tem-se centrado na externalização das funções próprias da administração para o setor privado, cujo instrumento jurídico de referência é a contratação pública ao amparo da Lei 9/17 de Contratos do Setor Público. A defesa deste modelo gerencial frente à crítica assinalada encontra a sua resposta nos próprios limites recolhidos na lei. As administrações são sempre as titulares do serviço, respondem polo mesmo perante os cidadãos e em nenhum caso são externalizáveis aquelas funções que constituem um exercício da autoridade. 

Direitos e serviços

No entanto, sem deixar de ser preocupante este processo privatizador, estaríamos ainda assistindo ao esvaziamento material dos conteúdos destes direitos por outra via menos visível e de um maior calado: a incorporação dos princípios de concorrência, produtividade e flexibilidade próprios do modelo mercantil por dentro da administração. Se o primeiro processo já conhecido podemos chamá-lo de exoprivatização, este segundo denominamo-lo endoprivatização. Neste modelo, os serviços públicos em lugar de serem expulsos para o mercado por meio das externalizações, é o próprio mercado que se incorpora dentro da gerência pública, mergulhando a administração por completo na racionalidade neoliberal.

Detrás de algumas das reformas legislativas apresentadas como mais inovadoras -a Lei 1/16 de Transparência de Galiza, a Lei 19/13 de Bom Governo, as modificações na Lei do Procedimento Administrativo, Lei 39/15, ou o Real Decreto 203/21 de Funcionamento do Setor Público por Meios Electrónicos, para citarmos algumas- estaria operando, discretamente, uma transformação mercantilizante da relação dos cidadãos com o estado. O que, somado às constantes limitações de gasto recolhidas anualmente nos orçamentos gerais, estabelece um padrão eficientista que forma parte do mesmo programa de governança neoliberal que as privatizações tradicionais.

Boa parte das narrativas ao redor da suposta modernização estatal o que supõem não é mais do que a instauração de um quadro normativo especificamente mercantil no conjunto da vida política

Exemplos desta lógica são a incorporação de critérios de flexibilidade de normas, de agilização de procedimentos, de accountability, de auditorias etc., que, sob parâmetros gerais de eficiência e eficácia, estabelecem um marco geral de atuação e interpretação da cousa pública puramente formalista e economicista, em que os bens e serviços aparecem como mais um produto de troca do mercado.

A assunção acrítica deste conjunto de princípios e parâmetros de funcionamento da administração, acolhidos polo geral como positivos até mesmo polas forças políticas transformadoras, supõe um alto risco. Pois este caminho encerra uma forte limitação para a autêntica prestação de serviços entendidos como direitos de cidadania. E o direito público que ordena as relações entre o estado e o cidadão acaba por se transformar numa sorte de direito contratual desapossado do seu conteúdo político e, portanto, da sua capacidade transformadora. Por outras palavras, boa parte das narrativas ao redor da suposta modernização estatal o que supõem não é mais do que a instauração de um quadro normativo especificamente mercantil no conjunto da vida política. Nele o público só é realizável através dos seus códigos, os seus procedimentos e os seus padrões, e a cidadania é, antes de mais, percebida como clientela da administração.

Assim sendo, o grande repto para o desenvolvimento de verdadeiras políticas públicas transformadoras não está apenas no risco de aprofundamento na privatização dos serviços, que bem conhecemos na Galiza da mão de Nuñez Feijóo, como também no aparente apoliticismo e tecnocracia que têm rodeado a gestão do público, no municipal, no autonómico e no estatal, de direita para esquerda. Porque garantir direitos não é o mesmo que ofertar bens e serviços.

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