Nem economia, nem saúde: Bolsonaro faz um cálculo político

Caso único no mundo, o governo brasileiro se aliou ao novo coronavírus em propaganda e atos concretos. Objetivo é transferir para adversários políticos o peso da crise econômica, que já se anunciava desde antes da pandemia, e se fortalecer na corrida pela reeleição em 2022. Eis uma crónica sob o terreno da jornalista brasileira Ivony Lessa
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Em 29 de maio, o Brasil passou a Espanha em número de vítimas da COVID-19, com 27.276 óbitos desde o início da pandemia. Cinco dias depois, o país superou a Itália ao registrar 34.021 vidas perdidas para a doença e o recorde de 1.473 mortes em 24 horas. Com uma aplicação baixíssima de testes por milhão de habitantes –cerca de 8 mil– um estudo da Universidade de São Paulo estima que o número real de casos de COVID-19 seja 11 vezes maior que a contagem oficial, credenciando o Brasil à condição de novo epicentro mundial da pandemia. 

É nesse contexto de aceleração da crise que diversas localidades brasileiras anunciaram a flexibilização de medidas de isolamento social. Uma deliberação bizarra, para não dizer criminosa, e que, no entanto, não surpreendeu ninguém. Ao contrário, muitos aplaudiram o "retorno ao trabalho", aquele que enobrece o homem.

A dicotomia entre saúde e economia vem sendo construída pelo governo federal desde a chegada do novo corona vírus ao Brasil e agora (agora!) rende frutos: poucos governantes de estados e municípios, que precisaram enfrentar a presidência e assegurar no Supremo Tribunal o direito de impor medidas de combate à pandemia, ousam defender a necessidade de manter as pessoas em suas casas.

As apostas políticas de Jair Bolsonaro sempre foram extravagantes. Quanto à pandemia, o presidente do Brasil optou, inconfessadamente, por lançar o país na experiência da imunização de rebanho, adotada na Suécia e interrompida no Reino Unido por seu altíssimo custo humano e ao sistema de saúde. No entanto, o presidente e seus conselheiros sabem que o caos pode ser favorável em situações de risco –político e legal, no caso de Jair Bolsonaro e sua família– e propicia o surgimento de heróis. Para isso, aplicaram-se algumas estratégias, que ilustraremos com frases do próprio governante:

1. Negacionismo

"No meu entender está superdimensionado o poder destruidor desse vírus" (9 de março).

2. Conspiracionismo

"Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus" (22 de março).

3. Charlatanismo

"Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, […] seria uma gripezinha ou resfriadinho" (24 de março). "Passei a divulgar a possibilidade de tratamento da doença [com cloroquina] desde sua fase inicial" (8 de abril).

4. Fatalismo

"Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento" (20 de março). "Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia" (29 de março).

5. Terceirização

"Vou ligar para o Mandetta [então ministro da saúde]. Não sou médico. O que eu ouvi até o momento é que outras gripes mataram mais do que esta" (11 de março). [Ao ser questionado sobre número de mortos] "Não sou coveiro" (20 de abril).

6. Populismo econômico

Está morrendo gente? Está. Lamento? Lamento. Mas vai morrer muito, muito, mas muito mais se a economia continuar sendo destroçada por essas medidas [de isolamento social]" (14 de maio).

Para além das palavras, muito foi realizado. Jair Bolsonaro não liberou verbas para o combate à COVID-19 aprovadas pelo Legislativo para estados e municípios. Dificultou o atendimento da Seguridade Social, responsável pelo pagamento do seguro desemprego e outros benefícios, atrasou e criou empecilhos de acesso aos auxílios emergenciais aprovados pelo Congresso, oprimindo o alto contingente de trabalhadores informais e demais categorias atingidas pelo isolamento, fomentando aglomerações diárias nas portas dos bancos. Pressionou até a demissão dois ministros da saúde, médicos, que resistiram a suas orientações contra o isolamento social e pelo uso irrestrito da cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada e com graves efeitos colaterais. O país está há quase um mês sem ministro da saúde. O boletim diário de informações sobre a pandemia está sendo divulgado somente às 22 horas e com menos dados, evitando que figure nos principais telejornais.

O Brasil ainda suspendeu contratos de compra de respiradores com fornecedores estrangeiros e ameaçou sair da Organização Mundial da Saúde (que atuaria com "viés ideológico"). Bolsonaro está executando outras medidas muito inquietantes. A recriação do ministério da Segurança Pública deverá acontecer em breve, em preparação à terceira onda de crises da pandemia – após a de saúde e a econômica–. Em abril, Bolsonaro assinou uma portaria que amplia o direito de compra de munição por pessoas físicas, disparando as vendas em 78%, além de revogar o rastreamento de armas e munições no país. Na semana em que o Brasil atingiu 1.500 mortes diárias por COVID-19, o presidente liberou a venda de fuzis 5.56 e 7.62, até então de uso exclusivo do Exército. A aposta na morte poderá vencer novamente. 

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