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Crônica desde o Donbass: Os piratas de Mariupol

A carcaça dos prédios continua enegrecida pelos combates, mas a cidade já mexe. Há mercados de rua, pintam-se passadeiras, removem-se escombros, passam autocarros e as paragens estão cheias. E numa cidade com praia, há até quem ouse não desperdiçar o verão. O som das ondas que se desfazem na areia é internacional. O riso das crianças também. Neste areal, que até há dois meses ninguém se atrevia a pisar por causa das minas e onde jaziam cadáveres, juntam-se grupos de jovens e idosos para tomar banhos de sol e mar. Atrás desta praia, está uma cidade destruída que já foi um verdadeiro inferno na Terra e só quem olhe para o horizonte que separa o céu do Mar de Azov pode tentar por breves momentos esquecer que está em Mariupol.
Ruslan enche garrafões de água junto a uma fonte em Mariupol, no Dombass. (Foto: Bruno Carvalho)
photo_camera Ruslan enche garrafões de água junto a uma fonte em Mariupol, no Dombass. (Foto: Bruno Carvalho)

Até fevereiro deste ano, por negócios ou por turismo, eram muitos os que se alojavam no Hotel Reikartz, propriedade da maior cadeia hoteleira na Ucrânia com o mesmo nome. Precisamente no mês em que completava dez anos de existência, o edifício sofreu as consequências de viver praticamente a paredes meias com a sede dos serviços secretos ucranianos (SBU).

Depois de meses encerrado na cave deste hotel com a família, já sem explosões e em total liberdade, de entre os destroços, aparece um velho conhecido. Sacha, de apenas 12 anos, tem o rosto e os braços sujos, e traz a camiseta cheia de pins como se de um general soviético se tratasse. É um pequeno pirata numa cidade destruída, comandante de um exército imaginário, que apanha tudo o que encontra para se dedicar com os três irmãos mais novos a todo o tipo de brincadeiras.

Sacha, 12 anos, viveu vários meses escondido na cave do hotel. (Foto: Bruno Carvalho)
Sacha, 12 anos, viveu vários meses escondido na cave do hotel. (Foto: Bruno Carvalho)

Mas depois de abandonarem a própria casa e confiarem a vida à segurança da cave deste hotel, o inacreditável aconteceu quando menos esperavam. Já depois do fim dos combates em Mariupol, quando o perigo parecia já ter passado, um incêndio destruiu o que restava do edifício.

"De repente, o meu pai acordou-me. 'Levanta-te! Há um incêndio!'", recorda. "Saímos todos em choque. Se não fosse o meu pai, teríamos morrido queimados". Nessa noite, a ajuda dos vizinhos foi, uma vez mais, a demonstração de que os laços da comunidade saíram mais reforçados com a guerra. "O meu pai acabou por sair de casa em calções. Estava tanto frio naquela noite. Aconteceu tudo tão depressa. Tudo o que tínhamos ardeu. Os meus bonés, tudo, tudo, até os meus sapatos".

Não há escola

Sem escola desde fevereiro, passa a maior parte do tempo na rua. Explica que as forças ucranianas usaram o edifício como posição militar e que acabou por ser atacado pelas tropas russas. "Os soldados do [Batalhão] Azov estavam lá e [agora] não há escola. Metade do edifício ainda se mantém mas a outra metade não tem nada", descreve Sacha. À espera de setembro para começar a vida de estudante numa outra escola, aproveita o tempo livre para usar a fisga e para colecionar todo o tipo de despojos de guerra, que é coisa que não falta em Mariupol.

Sacha mostra algumas das suas conquistas enquanto ajuda a irmã numa operação delicada. Há dias, encontraram um pombo ferido e puseram-no numa gaiola. Agora, pretendem transferi-lo para uma maior. Alina diz que o objetivo é curar o animal e depois deixá-lo ir. Primeiro, forra a base com documentos dos serviços secretos ucranianos. "Quero fazer isto para que o pombo não cague a gaiola", explica Alina com a sinceridade própria de uma criança. Desde há meses que milhares de resmas de papel com informações pessoais sobre centenas de cidadãos servem para todo o tipo de necessidades. Para acender fogueiras, para a casa de banho e, agora, para os dejetos deste pássaro em convalescença.

Mesmo sem bombas, por vezes, a vida continua a ser um milagre em Mariupol

Ao lado, uma cadela gorda parece não se importar muito com o que está a acontecer. Para além dos gatos e da companhia temporária do pombo, Alina diz que esta cadela tinha dono mas que foi abandonada e que passou a viver ali. Apesar de todos os contratempos e de viverem como saltimbancos, parece haver sempre lugar para mais um nesta família. "Encontrámo-la na rua e veio viver connosco e não a vamos abandonar".

Alina, de 10 anos,  prepara a gaiola para o pombo ferido. (Foto: Bruno Carvalho)
Alina, de 10 anos, prepara a gaiola para o pombo ferido. (Foto: Bruno Carvalho)

Mas como nem tudo são brincadeiras, Sacha também ajuda os pais e os vizinhos a enfrentar os obstáculos diários de uma cidade que não consegue assegurar as necessidades mais básicas à população. Hoje é dia de ir buscar água. Ruslan, um dos vizinhos, abre caminho com um carro de mão cheio de garrafões vazios. Numa das ruas aponta para o chão. "Cuidado, podem cair objetos". Ao lado, um edifício com a fachada destruída tem vários pedaços das varandas em risco de queda. Mesmo sem bombas, por vezes, a vida continua a ser um milagre em Mariupol.

Pelo caminho, aparece uma biblioteca infantil. "Daqui disparavam soldados do [Batalhão] Azov", refere. Como se fosse guia, aponta para um espaço destruído e explica: "Aqui é o registo, onde também se faziam casamentos. Até isso estes malditos [governo ucraniano] nos tiraram". Ruslan é pró-russo e não hesita em demonstrá-lo. Mas brinca quando passa um casal que também olha para dentro do edifício. "Talvez venham procurar o certificado de divórcio".

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