Quem vai virar uma Venezuela?

Com a licença poética que o terceiro mandato e o contexto caótico lhe conferem, Lula da Silva permanece desafiando narrativas com a tarefa estratégica de desarmar bombas-relógio. Nas eleições presidenciais de 2022, "uma Venezuela" esteve no centro do debate: a direita alardeava o risco de "virar uma Venezuela", em referência à crise econômica supostamente provocada pelo comunismo, enquanto apoiadores de Lula diziam que o cenário nacional sob o último governo já nos equiparava ao país vizinho. De um lado ou de outro, "uma Venezuela" poderia ser satisfatoriamente substituída por algo como "o oitavo círculo do inferno". A respeito de toda essa carga, e precisamente por causa dela, Lula da Silva recebeu a primeira visita de Nicolás Maduro a Brasília em oito anos. Em entrevista realizada em 29 de Maio, o presidente enfatizou a necessidade de "descontruir a narrativa" montada contra o país: "Tem pessoas [que] nem sabem onde fica a Venezuela, mas sabem que a Venezuela tem 'problema de democracia'". Esse ponto de vista escandalizou a opinião publicada e pessoas de todo o espectro político. A convicção sobre o totalitarismo venezuelano desconhece que as votações na Venezuela vêm registrando menos intercorrências que as últimas eleições do Brasil, segundo observadores internacionais (Em passant, também se fala pouco ou nada sobre o que vem ocorrendo em outros vizinhos como Equador, Peru e, mais recentemente, Colômbia). A realidade está abrindo espaço para desorganizar a narrativa que sustenta o discurso dominante sobre a Venezuela As convicções são tão histéricas que uma jornalista tentou criar um fato de autoritarismo venezuelano contra a imprensa em solo brasileiro. Delis Ortiz, repórter veterana, cuja filha tinha um cargo no Governo Bolsonaro, foi a diversos programas de TV para denunciar, aos prantos, a agressão que teria sofrido dos "seguranças de Maduro". Para além da ausência de registro visual da agressão (embora houvesse dezenas de jornalistas no local) e de que os vídeos existentes mostram a repórter empurrando furiosamente os guarda-costas (cavando a falta, no jargão futebolístico), os responsáveis pela segurança do presidente Maduro, inclusive no momento do incidente, eram militares do exército brasileiro. Quando isso ficou comprovado, Delis Ortiz não voltou à televisão para retificar seu lapso. O fato inventado, uma vez que extensivamente publicizado, entrou para os anais do totalitarismo pós-chavista. Narrativas As narrativas estão se deslocando rapidamente em todo o planeta.Após a visita ao Brasil, Nicolás Maduro fez um tour por diversos países. Ao mesmo tempo, a OFAC (Agência de Controle de Ativos Estrangeiros) dos Estados Unidos autorizou a retomada do comércio com a Venezuela a uma série de empresas estadunidenses e europeias. Caberia questionar: com que jurisdição? Mas essa é uma pergunta difícil de responder na liberal-democracia. Uma narrativa pode ser definida como um discurso capaz de evocar, através da sucessão de fatos, um mundo dado como real ou imaginário, situado em um tempo e espaço determinados. A realidade está abrindo espaço para desorganizar a narrativa que sustenta o discurso dominante sobre a Venezuela. Trata-se de uma narrativa estrutural para a América do Sul, porque a Venezuela foi pioneira na chamada Onda Rosa de governos de esquerda e, assim, ecoa em tudo que adveio dela. O guionista do Brasil Já é um lugar-comum dizer que "o guionista do Brasil aplasta o de House of Cards". É que as reviravoltas na justiça e nas negociações políticas –inerentes a qualquer estado verdadeiramente democrático– são narradas como intrigas de film noir. Entre as melhores tramas do último mês, temos a cassação do mandato de deputado de Deltan Dallagnol, procurador que acusou Lula da Silva na Lava Jato, por ter deixado o judiciário enquanto era alvo de 15 processos administrativos. Em 22 deste mes, haverá o julgamento de uma ação que pode tornar Jair Bolsonaro inelegível por abuso de poder. 22 é o número do partido de Bolsonaro –piscadela do guionista–. Também surgem cada vez mais denunciantes do sistema judiciário paralelo que se instalou na cidade de Curitiba sob Sérgio Moro, incluindo chantagens, extorsão, delações falsas, espionagem ilegal, etc. O ex-juiz e hoje senador Moro tinha a ambição de se tornar juiz da suprema corte brasileira, mas é provável que o advogado responsável pela anulação das condenações de Lula, Cristiano Zanin, venha a ocupar essa vaga. Indicado pelo presidente, ele deve ser aprovado pelo Senado para se tornar ministro do STF. Uma narrativa de justiça ou de vingança? Isso ainda está em disputa.