As sementes africanas dos cravos de Abril

Foi há 50 anos. Em abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas derrubou a ditadura do Estado Novo que esteve no poder durante quase meio século. A inspiradora Revolução dos Cravos que instaurou a democracia em Portugal veio de um lugar insólito: do exército. Não há Histórias alternativas, mas é certo que a realidade teria sido outra se Salazar não tivesse atirado o país para uma guerra colonial. Foi a resposta do regime aos movimentos nacionalistas africanos que se alastravam por Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique. Meses depois, Amílcar Cabral, um dos mais inspiradores líderes independentistas africanos, fundador e presidente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) disse, em Dacar, "temos a certeza de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal". Cabral seria assassinado pouco antes de ver a sua profecia ser concretizada. De facto, foram as lutas anticoloniais que, unidas, acabaram com o regime fascista português. A Guerra Colonial Portuguesa A 13 de abril de 1961 Salazar falava ao país para anunciar a resposta militar às revoltas de Angola, alegando que eram um ataque à integridade da nação. Afinal, um dos principais pilares da construção identitária do Estado Novo assentava na existência de um império que, segundo acreditavam, ia do Minho até Timor. Portugal era "plurirracial e multicontinental" e na escola ensinava-se o nome dos rios e das linhas de ferro das "províncias ultramarinas". Assim, resistindo à pressão internacional e afastando quem internamente se lhe opunha, Salazar convocou a população para a guerra em Angola, "rapidamente e em força". Rejeitou reiteradamente qualquer possibilidade de solução negociada. O conflito alastrar-se-ia, em 1963, à Guiné-Bissau e, em 1964, a Moçambique. Abril não só cheira a cravos como também dança ao ritmo do semba angolano e sabe a cachupa cabo-verdiana Nos 13 anos que viria a durar, a Guerra Colonial Portuguesa mobilizou 90% da população jovem masculina. Destes, 10.000 morreram, 20.000 ficaram estropiados e muitos mais voltaram traumatizados. As mortes africanas terão ascendido a 100.000 e o número de feridos foi certamente muito superior. O ímpeto inicial de mobilização pela nação que gritava "Angola é nossa! " foi-se esvaindo à medida que as consequências sociais e económicas do conflito se agudizavam. Em Portugal, a resistência política e os movimentos artísticos mobilizaram-se na clandestinidade para denunciar a exploração e violência racista do regime. Nas universidades explodia o Movimento Estudantil, em 1962, em Lisboa e, em 1969, em Coimbra. A oposição à Guerra Colonial era uma das principais bandeiras. Além da violenta repressão que sofreram, muitos dos estudantes foram obrigados a combater na guerra que repudiavam. A contestação política estudantil chegaria assim às fileiras militares em África, disseminando no exército ideias anticoloniais. Enquanto os estudantes se manifestavam no país, corriam no resto do mundo imagens e descrições das atrocidades cometidas por militares portugueses, como os massacres de Tete, em Moçambique. O regime sentia cada vez mais dificuldade em mobilizar soldados para uma guerra que consumia cada vez mais recursos. Já nos anos finais o conflito representava 40% do orçamento do Estado. Independência e revolução Os meses que antecederam a Revolução dos Cravos seriam conturbados para o regime chefiado, desde 1968, por Marcelo Caetano. Em 1973, o PAIGC declarava unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, que é imediatamente reconhecida pela ONU e por 72 países. Era o princípio do fim. O descontentamento ia crescendo dentro do exército português à medida que as condições no terreno se degradavam e o absurdo da guerra se tornava mais evidente. Iniciou-se uma conspiração que daria origem ao Movimento das Forças Armadas que seria o protagonista do fim do regime. A Revolução dos Cravos teve adesão quase imediata por parte da população. A descolonização demorou quase um ano e não foi pacífica. Eram centenas de milhares os colonos portugueses espalhados por territórios africanos que se recusavam a deixar as suas vidas para trás, tendo ficado expostos à raiva local. Havia figuras que tinham participado na Revolução que não concordavam com a descolonização. As tropas portuguesas continuaram em África até novembro de 1975, momento em que avançou a independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. As independências africanas e a democracia portuguesa têm uma génese comum. Na celebração dos seus 50 anos, é importante não esquecer que Abril não só cheira a cravos como também dança ao ritmo do semba angolano e sabe a cachupa cabo-verdiana. Viva o 25 de Abril!