Entre muitas extorsões possíveis

Em 14/3/2020, Gustavo Bebianno teve um infarto fulminante aos 56 anos. Homem forte da campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro, o ex-lutador de jiu-jitsu resistiu apenas 48 dias no governo devido a rixas com a família presidencial. Naquele mês, denunciara a criação de uma agência de inteligência paralela a serviço de Bolsonaro e seus filhos e, nos bastidores da entrevista, confessou o temor de falar tudo o que sabia. O laudo post-mortem não foi emitido de imediato; havia um ferimento grande no rosto em decorrência de uma queda. Não há dúvida de que o homem estava sob um forte estresse. Quase quatro anos se passaram entre a denúncia inicial e a operação da Polícia Federal (PF) contra uma suposta organização criminosa instalada na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o intuito de monitorar autoridades e outras pessoas, usando ferramentas de geolocalização sem a devida autorização judicial. Passaram-se quatro anos e uma derrota eleitoral. Em 29/1/2024, a casa de praia onde estavam Jair Bolsonaro e os três filhos mais velhos –Flávio, Eduardo e Carlos– foi alvo de busca e apreensão ligada ao caso. Reuniram-se na noite anterior para transmitir uma "super live" que, em seu auge, alcançou mais de 470 mil espectadores simultâneos educando-se sobre a perseguição política sofrida pelo ex-mandatário. Na manhã seguinte, antes que a polícia chegasse à sua porta, saíram para pescar. Não se sabe o que trouxeram do mar, nem o que deixaram nele. Há suspeita de concocção de um dossiê para atrelar dois juízes do Supremo Tribunal Federal ao crime organizado A investigação confirmou o uso ilegal do software israelense FirstMile contra mais de 30 mil vítimas e a produção de relatórios para um "núcleo político". Há suspeita de concocção de um dossiê para atrelar dois juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) ao crime organizado. Destaca-se também o caso da deputada Joice Hasselmann. Inicialmente uma grande apoiadora do ex-presidente, não se sabe quando e por que se tornaram desafetos amargos. Sabe-se, no entanto, que em 2021 ela sofreu um incidente brutal no seu próprio apartamento, relatando ter despertado com lesões e fraturas, mas sem lembrança do que teria ocorrido. (En passant, corre à boca miúda que o ex-juiz Sérgio Moro não teme a cassação do seu mandato de senador –um processo em estágio avançado– por "ter tido acesso a muitas informações"). O que é um partido Chantagem, extorsão, agressão e demonstrações de força são métodos da milícia. Há quem identifique um Partido Miliciano infiltrado na Direita como um cavalo de Tróia, conformando um Estado paralelo que sabota a ação dos poderes constituídos, sob o escudo de pautas conservadoras. Enquanto a direita tradicional, dizem, tem interesses próprios e capacidade para disputar dentro dos mecanismos democráticos, a milícia se apoia nesses parlamentares para materializar sua guerra contra o Judiciário em nome da liberdade para delinquir. Eu não iria tão longe nessa distinção. Outra prática da milícia é a construção de edifícios precários sem autorização que, uma vez em pé, são regularizados por meio de escambos com políticos locais. Em decorrência, muitos prédios desabam no Rio de Janeiro, dito berço das milícias. Ora, há alguns meses, em um dos bairros mais nobres de São Paulo, um edifício foi denunciado precisamente nessas condições: sem autorização ou fiscalização, ultrapassando a verticalização permitida na zona. A diferença é que os apartamentos foram construídos por grandes grupos financeiros, chegam a 800 m² e custariam R$15 milhões cada [perto de 3 milhões de euros]. Não fosse o barulho da denúncia, teriam sido regularizados. É uma diferença de grau e a milícia não é uma classe para si. A estratégia sistemática de destruição das forças políticas históricas, ou, em termos marxistas, a quase impronunciável luta de classes, emaciou o sistema a tal ponto que nos vemos perdidos entre bandidos rasos, polícia (em sentido amplo, administrativo), conglomerados financeiro-midiáticos (que já são uma coisa só), apartidarismos de verdades individuais ou reveladas, organizações que apontam às tendências em voga (hoje, uma crítica "antiglobalista") e o que restou dos partidos. Lula da Silva ajuizou que "[no Brasil] o único partido com cabeça, tronco e membros é o Partido dos Trabalhadores", enquanto os outros seriam "cooperativas de deputados que se juntam em época de eleição". No contexto das eleições municipais que se aproximam, falou recentemente a uma plateia de filiados: "Tenho 78 anos, sou presidente pela 3ª vez, já fiz mais do que imaginei que faria e agora eu quero salvar esse partido porque é a coisa mais importante que tem neste país".