As vidas ciganas importam

Os partidos de extrema-direita conquistam eleitorado cavalgando nos rancores latentes nas sociedades em relação a determinados grupos. Em Portugal, o principal alvo escolhido é a comunidade cigana. Em plena pandemia de Covid-19, o líder do principal partido de extrema-direita português propôs um confinamento de bairros ciganos. Esta proposta junta-se ao seu habitual discurso de associar os membros desta comunidade à criminalidade e ao que ele designa de “subsidiodependência”, ou seja, pessoas que precisam de prestações sociais para sobreviver. Ainda que seja um choque ouvir um político eleito verbalizar estas ideias, elas existem há muito na sociedade portuguesa. A ciganofobia está tão entranhada que nem a vemos. Mas a sua disseminação denuncia-se, por mais insólito que possa parecer, pela quantidade de sapos de cerâmica que encontramos à porta de estabelecimentos comerciais. Em 2016, a realizadora Leonor Teles lançou a premiada curta-metragem “Balada de um Batráquio” para denunciar o teor xenófobo desta prática em Portugal como forma de evitar a entrada de membros da comunidade cigana em lojas, cafés e restaurantes, devido às superstições que se pensa que estes têm ligadas ao animal. Basta um passeio atento pelas ruas para constatar que continua a não haver vergonha em colocar este símbolo como forma de declarar: se és cigano/a, não entres! Séculos de estigmatização Em 1535, o rei João III ordenou “Que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem.” Esta seria a reação à chegada à Península Ibérica do que se considera serem as primeiras peregrinações ciganas. Só em 1826 lhes seria reconhecido o direito à nacionalidade portuguesa, como a qualquer pessoa que nascesse em solo nacional. No entanto, não foi suficiente para atenuar o estigma. Em 1920, a Guarda Nacional Republicana (GNR) emitiu um regulamento que mandava manter ciganos em “severa vigilância”. Poucos anos após a revolução do 25 de abril de 1974, em 1980, a GNR foi obrigada a alterar o regulamento pelo seu teor discriminatório. Em resposta passou a aplicar “especial vigilância” a nómadas. Ao longo das últimas décadas foram vários os episódios de estigmatização protagonizados por representantes de instituições do Estado. Por exemplo, em 1993, o presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima deu um prazo de oito dias para que todos os membros da comunidade cigana abandonassem aquele concelho. Em 2012, em Vila Verde, houve relatos de torturas após uma rusga da GNR a um acampamento cigano. Estima-se que existem entre 40 e 60 mil pessoas ciganas em Portugal Quantos séculos mais serão precisos para considerarmos as pessoas ciganas como membros de pleno direito da nossa sociedade? Décadas de segregação Estima-se que existem entre 40 e 60 mil pessoas ciganas em Portugal. Muitas delas vivem nos bairros sociais contruídos nos anos 80 e 90 para acabar com os acampamentos que existiam à entrada das cidades. Houve, no entanto, pouca preocupação em distribuir territorialmente estas casas e, atualmente, esta comunidade está concentrada em certas partes da cidade, normalmente associadas à delinquência. Um estudo recente do Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa concluiu que estes programas de realojamento levaram a uma “segregação da comunidade cigana” e 37% das pessoas desta comunidade continuam a viver em bairros de lata ou acampamentos. O relatório destaca ainda a prevalência de situações de pobreza nesta comunidade e os obstáculos que existem no seu acesso ao emprego e à habitação. O local de residência determina as condições de vida destas pessoas, e a segregação espacial afeta o seu acesso à educação, à saúde e ao espaço público, com graves consequências futuras. Mas não é apenas à segregação física que esta comunidade está condenada. É também à segregação simbólica. Não têm representação mediática, não integram as narrativas históricas nacionais e os seus hábitos e tradições são um mistério para o resto da população. O empoderamento cigano Recentemente, o Presidente da República valorizou a comunidade cigana ao colocá-la na história portuguesa, evocando a participação desta na luta pela Restauração da Independência de 1640. Programas como a Música Cigana a Gostar Dela Própria são, também, fundamentais para apreciar e visibilizar a cultura cigana. No entanto, para vencer a ciganofobia é preciso garantir o acesso desta comunidade à habitação, à saúde e à educação, combatendo a sua segregação e estigmatização. Um país mais justo e igualitário tem de garantir serviços públicos capazes de darem resposta às múltiplas formas de vida das suas comunidades.