O território une o que a fronteira separa

Mais de metade do fluxo de carros entre a fronteira dos Estados português e espanhol é feito através da Galiza. É isto que dizem os últimos dados publicados pelo Observatório Transfronteiriço Espanha/Portugal, de 2018: o tráfego médio nesta parte da fronteira foi de 39.000 veículos ligeiros diários, 56% do total. Este dinamismo mostra a capacidade de os dois territórios resistirem às construções político-administrativas a que estão sujeitos. A proximidade cultural –sobretudo da língua–, a partilha de caraterísticas edafoclimáticas, a semelhança entre perfis produtivos, bem como um passado em comum não fizeram esbater os vínculos entre os povos do noroeste peninsular. A europeização dos Estados ibéricos, iniciada nos anos 80, permitiu ultrapassar muitos dos limites formais e simbólicos das suas fronteiras. É certo que se tem avançado na integração entre estes dois territórios, mas ainda há muito por fazer. Os fluxos humanos, culturais e económicos entre a Galiza e o Norte de Portugal continuam à mercê das vontades estatais. Razões comerciais, educativas, culturais e de lazer explicam o elevado número de deslocações diárias entre a Galiza e Portugal Os fluxos transfronteiriços Há várias razões que explicam o elevado número de deslocações diárias entre a Galiza e Portugal. Destacam-se as laborais, pois há pessoas que trabalham de um lado da raia e vivem no outro; as comerciais, devido às diferenças entre preços e tipo de oferta (por exemplo, os carros portugueses recorrem frequentemente às bombas de gasolina galegas à procura de combustível mais barato); as educativas, pois há iniciativas de cooperação entre as universidades da Galiza e do Norte de Portugal que promovem a mobilidade das respetivas comunidades académicas; os investimentos empresariais, já que muitos grupos de empresas com domicílio fiscal espanhol investem em parques empresariais no Alto Minho. Há ainda razões culturais e de lazer. As Rias Baixas são um destino de verão procurado por muitas famílias do Norte de Portugal, e a vitalidade cultural dos municípios galegos é cada vez mais atrativa para a juventude portuguesa. Por outro lado, galegos e galegas deslocam-se a Portugal pela sua riqueza gastronómica, pelas festas populares e pela peculiaridade das suas paisagens urbanas. À escala local, a fronteira tem dinâmicas muito próprias que entram no quotidiano das comunidades transfronteiriças. Muito se tem feito a este respeito através de projetos de cooperação entre municípios raianos, que se unem na forma de Eurocidades, como Chaves-Verín, Tui-Valença e Tomiño-Cerveira. Ali partilham-se serviços (instalações desportivas, equipamentos culturais e eventos), solucionam-se problemas em conjunto, e fortalece-se a ideia de comunidade. É ali onde mais se sentem as consequências das lógicas nacionais que imperam na gestão do território. A(s) fronteira(s) que persiste(m) Em 16 de março de 2020, como resposta à crise pandémica da Covid-19, Espanha e Portugal declaram o encerramento das suas fronteiras. Das 16 passagens fronteiriças para a Galiza, apenas duas permaneceram ativas: Tui-Valença e Chaves-Verín. Uns meses mais tarde, reabriram-se quatro novas passagens, mas durante quase quatro meses blocos de cimento impediram a passagem nas restantes. Neste periodo, quem partilhava a vida entre os dois lados da fronteira passou a ter de fazer deslocações de dezenas de quilómetros para abrir o seu negócio ou chegar ao local de trabalho que antes ficava a poucos minutos de casa. O encerramento das fronteiras foi demorado, comparado com outros países, e afetou com especial incidência os territórios que têm estado na vanguarda da diluição das fronteiras. À recente má gestão das fronteiras, juntam-se décadas de falta de investimento em transportes públicos, essenciais para a mobilidade transfronteiriça, especialmente na ferrovia. De igual forma, a limitada autonomia institucional e financeira que existe a nível municipal, no caso galego, e a nível regional, no caso português, é um entrave ao aprofundamento da cooperação transfronteiriça. Nem durante as ditaduras ibéricas –uma das fases históricas mais sombrias da fronteira– os fluxos transfronteiriços cessaram. Pelas rotas do contrabando eram passados produtos e pessoas à revelia das autoridades. Longe dos tempos da ilegalidade, a Galiza e o Norte de Portugal olham para o outro lado da raia e veem um passado, um presente e um futuro que os unem. Nos dois lados, há a consciência de que é nas bases culturais e sociais partilhadas que reside a força para contrariar a posição periférica à qual os respetivos Estados os condenaram.