Literatura para a militância nacional: hinos da lusofonia

Da importância do sistema literário na conformação da identidade nacional dá ideia o facto de os próprios hinos nacionais serem obra, a letra, de alguns dos seus mais grandes literatos.

amílcar
photo_camera Sede da Fundação Amílcar Cabral


Rabindranath Tagore, prémio Nobel de literatura em 1913, é o autor dos hinos nacionais de Bangladeche (Minha Bengala Dourada) e Índia (O espírito de todo o povo) e não é exceção a lusofonia a esta “militância criativa” de escritoras e escritores. De Moçambique ao Brasil e da Galiza a Timor Leste foram os mestres das letras os artífices de pôr voz à exaltação da nação  ainda que por vezes seja a letra do hino a sua única contribuição à literatura.

Espertar do sono

É comum nos nossos hinos fazer apelo à memória coletiva para acordar desse sono em que nos inseriu a história, para procurar o caminho da liberdade (“desperta do teu sono, fogar de Breogán”, diz Pondal; “avante unidos firmes e decididos” diz o hino de Timor-Leste. “A paz e o progresso! /  Nós vamos construir / Na pátria imortal” escreveu Amílcar Cabral em hino que foi oficialmente cantado em dois países. 
Mas, como é que são os hinos dos países da lusofonia? Vejamos em breve percorrido, centrando-nos, por questão de  espaço, nos hinos derivados do processo de independência das colónias portuguesas no século XX e deixando para outro momento os hinos de Portugal, do Brasil e da Galiza.

Moçambique:  Pedra a pedra construindo um novo dia
 

“Moçambique nossa terra gloriosa
Pedra a pedra construindo um novo dia
Milhões de braços, uma só força
Oh pátria amada, vamos vencer


Mia Couto, além de um dos escritores mais importantes de Moçambique, e o  mais traduzido - é também um dos autores da letra do hino nacional. Ele próprio, em entrevista a  Marilene Frelinto,  explica como foi: “Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por ‘viva, viva a Frelimo’. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos.

Mia Couto, um dos escritores mais importantes de Moçambique, é também um dos autores da letra do hino nacional

Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse ‘vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas’. E fomos fechados numa casa aqui na Matola [cidade próxima de Maputo] e aquilo era ótimo. Aquilo não era uma prisão, era ótimo porque nós tínhamos comida, numa altura em que não havia comida. E, portanto, guardávamos comida para a nossa família quando nos iam visitar; tínhamos uma piscina na casa, vivíamos ali bem. E quando vinham as sirenes, nós corríamos para trabalhar. Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra. Depois fez-se um concurso aberto e eu fiz parte do júri que acolheu essas propostas, mas eram todas muito fracas. E então alguém se recordou de revisitar aquelas propostas (da época de Samora), e foi uma daquelas que foi escolhida. Então, há razões que ajudam a triar essa idéia de que não é separável a literatura e a militância.” 

Angola: Solidários com os povos oprimidos. 
 

“Levantemos nossas vozes libertadas
Para glória dos povos africanos.
Marchemos, combatentes angolanos,
Solidários com os povos oprimidos”

De Manuel Rui, o autor de Angola Avante! o hino de Angola, já falamos numa entrega anterior, a da Casa dos Estudantes do Império, aquele espaço criador de ideias de liberdade em que coincidiram, ao mínimo, três dos letristas dos hinos nacionais aqui tratados, entre eles Manuel Rui. 

Numa entrevista de Isaquiel Cori Manuel Rui fala das circunstâncias em que surgiu o atual Hino Nacional de Angola:  “Em circunstâncias de extrema tensão, dadas aos bombardeamentos e à hipótese - em ultima análise e se os blindados entrassem em Luanda - de recorrer-se à guerrilha urbana, mesmo com coktails artesanais; mas, também, num clima pleno de convicções” e conta como foi convidado a escrever o Hino: “...A estória (e a história) é que houve um concurso com aquelas regras todas, dos envelopes com os pseudónimos, etc.

É comum nos nossos hinos fazer apelo à memória coletiva para acordar desse sono em que nos inseriu a história

O concurso foi dirigido pela Dra. Paulette Lopes, que vocês deviam ouvir, e outras que funcionavam no Ministério da Informação. Levadas as cassetes ao Comité Central alargado, foi escolhido um hino que seria da autoria de um jovem. Mas, mesmo assim e sob reserva, logo se decidiu que Rui Mingas e eu fizéssemos outro. No entanto, ocorreu que tivera havido uma troca involuntária de envelopes e o tal hino era de autoria de duas pessoas consideradas pessoas não-gratas, ex-colaboradores disso ou daquilo. Eu havia saído do Huambo para estudar em Portugal e mal conhecia Luanda e suas makas. Então, deixou-se de pensar em alternativa, mas numa necessidade imediata de Rui Mingas e eu fazermos o hino”

Um hino para dois países: Séculos de dor e esperança
 

Sol, suor e o verde e mar,
Séculos de dor e esperança:
Esta é a terra dos nossos avós!
Fruto das nossas mãos,
Da flôr do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada. 

Cabo Verde e Guiné Bissau compartiram durante anos o mesmo hino, Esta é a nossa Pátria bem amada, escrito em 1963 por Amilcar Cabral. Cabo Verde também utilizou a obra como hino até 1996 em que o Cântico da Liberdade se tornou oficial com música composta por Adalberto Higino Tavares Silva e a letra escrita por Amílcar Spencer Lopes

Canta, irmão
Canta, meu irmão
Que a liberdade é hino
E o homem a certeza.
Com dignidade, enterra a semente
No pó da ilha nua;
No despenhadeiro da vida
A esperança é do tamanho do mar
Que nos abraça,
Sentinela de mares e ventos
Perseverantes
Entre estrelas e o Atlântico
Entoa o cântico da liberdade.


São Tome e Príncipe: os braços heroicos do povo
“Independência total, total e completa
Construindo no progresso e na paz
A Nação mais ditosa da terra
Com os braços heroicos do povo

Alda do Espírito Santo, por António Domingues (1952)


Independência total é o hino nacional de São Tomé e Príncipe. Foi escrito por Alda do Espírito Santo, verdadeira alma mater da independência das ilhas. O hino foi adotado logo após o país conquistar a independência de Portugal em 12 de julho de 1975 e leva a música de Manuel dos Santos Barreto.

Timor Leste: ta-nia Nasaun.
Pátria, Pátria, Timor-Leste, nossa Nação.
Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação.
Pátria, Pátria, Timor-Leste, nossa Nação.
Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação.
Vencemos o colonialismo, gritamos:
Abaixo o imperialismo.


Pátria é o hino nacional da República Democrática de Timor-Leste. Com letra de Francisco Borja da Costa (que foi morto em 7 de dezembro de 1976, no mesmo dia em que o país foi invadido pela Indonésia) e música de Afonso Redentor Araujo. Foi composto em 1975 e usado pela primeira vez no dia 28 de dezembro do mesmo ano, quando Timor Leste se declarou independente de Portugal.  Quando em 20 de maio de 2002 Timor declarou a independência da Indonésia Pátria foi novamente declarado hino nacional. 
Inicialmente a letra foi somente em português mas na atualidade há uma versão em tétum, a  língua nacional e também oficial do país.


Pátria, Pátria, Timór-Leste, ita-nia Nasaun.
Glória ba Povu no ba ita-nia eróis libertasaun nasionál.
Pátria, Pátria, Timór-Leste, ita-nia Nasaun.
Glória ba Povu no ba ita-nia eróis libertasaun nasionál.
Ita manán hasoru kolonializmu, ita hakilar:
Hatuun imperializmu.


(Imagem interior: Alda do Espírito Santo, por António Domingues (1952)

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