Uma poeta comprometida com sua terra

Conceição Lima, a carne viva das ilhas

A república de São Tome e Príncipe está no centro do mundo. Ou isso cabe deduzir do marco que, situado no ilhéu de Rolas, indica que por ali passa a linha do Equador.

A poeta Conceição Lima. Imagem Portal Vermelho
photo_camera A poeta Conceição Lima. Imagem Portal Vermelho

Não estranha que com estas referências Conceição Lima, um dos nomes mais importantes da poesia africana contemporânea, titule um livro como O útero da casa

Quero-me desperta
se ao útero da casa retorno
para tactear a diurna penumbra
das paredes
na pele dos dedos reviver a maciez
dos dias subterrâneos
os momentos idos
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar–
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul.
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto

"Desde pequena, -escreve Carlos Machado no Portal Vermelho- a poeta são-tomense Conceição Lima prestou atenção ao poder das palavras. O pai, músico, compunha canções para a mãe após algum desentendimento do casal. Embalada pela música, a mãe voltava às boas. A menina Conceição notou que as palavras tinham a capacidade de restaurar a paz. Ao mesmo tempo, percebia que as palavras ferem, porque antes o pai magoara a mãe também com palavras"

Nascida em 1961 na ilha São Tomé, ali estudou a escola primária e secundária. Depois veio deixar as ilhas para estudar jornalismo em Portugal e licenciatura em Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros no King's College de Londres. Trabalhou para rádio e televisão em São Tomé e posteriormente para a BBC como produtora dos programas de Língua Portuguesa.

Conceição estreou com a coletânea de poemas O útero da casa publicado em Lisboa pela Editora Caminho em  2004. Dois anos depois publicou, também na Caminho, A dolorosa raiz do micondó. O micondó, ou imbondeiro, é uma árvore considerada sagrada por muitos povos africanos. Espécie de baobá, é conhecida como árvore da vida, devido à sua longevidade, que chega a seis mil anos. Portanto, em muitas comunidades, as gerações passam e as árvores sagradas permanecem, assistindo a tudo. É por isso que no poema “Sóya” (lenda) Conceição Lima escreve: “Há-de nascer de novo o micondó — / belo, imperfeito, no centro do quintal”. A árvore é uma referência ― quase certeza ― de futuro e de esperança. Em 2011, na mesma editora, publica O País de Akendenguê. Em 2015, publicou Quando Florirem Salambás no Tecto do Pico, obra traduzida para o alemão, o árabe, espanhol, francês, inglês, italiano, turco, servo-croata e shona.

Utopias e sonhos fiando a reescrita da casa

Diferentemente do que ocorreu nas outras colónias portuguesas não houve guerra em São Tomé e Príncipe. Mas certamente a luta armada nos territórios levantados em armas teve sua repercussão nas ilhas, quer na forma de repressão direta quer na forma de humilhações que, por vezes, deviam lembrar os lampejos do passado colonial e os ecos da escravatura. 

“Deixaram nas ilhas um legado / de híbridas palavras e tétricas plantações” ou “cada cafeeiro respira / agora um escravo morto”. 

Para Urbano Tavares Rodrigues, O Útero da Casa “é um livro diferente. Obra de análise íntima, traz-nos por vezes a meia voz, através da saudade e da mitificação das coisas amadas, a cor e a alma da ilha mãe de São Tomé, a sua dengue beleza, sua viuvez, seus palmares, o cantar dos búzios, a casa (o útero) centro do mundo, presente e futuro. Alta, perpétua claridade, pedra de reunião. 

Nestes versos em que se confrontam criaturas e lugares do outrora, que o tempo magnifica, com a nitidez do hoje, ouvimos a brisa nos canaviais, sentimos o odor do café e do cacau, vemos os ibiscos e o barro vermelho, o perfil da mesquita, a cidade morta, o mar". 

"Lê-se a mátria na terra sensual, até na luz da fruta, no sangue da lua, nas mãos de húmus e basalto porque Conceição Lima “escreve-se, em ideia e corpo, na carne viva da ilha".


No mesmo sentido escreve Bruno Gaudência no número 49 da revista Literatas:

“Um exemplo do universo político na poesia de Conceição Lima está  presente no poema Os Heróis, onde uma atmosfera mórbida é desvendada numa lógica de memórias conflituosa perceptivelmente relacionada às lutas de um país por independência e democracia: 

Na raiz da praça
sob o mastro
ossos visíveis, severos, palpitam.
Pássaros em pânico derrubam trombetas
recuam em silêncio as estátuas
para paisagens longínquas.
Os mortos que morreram sem perguntas
regressam devagar de olhos abertos
indagando por suas asas crucificadas.


E continua: “É percebível a rutura com 'o colonizador', com uma 'imagética do passado', algo presente também em poemas como “1975”, “Mostra-me o Sangue Agora” e “Manifesto Imaginário de um Serviçal”. 

Há ainda outro valor identitário presente em O Útero da Casa, numa assimilação de uma identidade maior, a africanidade, algo continental, pois a partir do meio do livro a autora amplia-se poeticamente numa busca mais coletiva que íntima, mais africana que são-tomense - algo que se cristalizará nos dois livros subseqüentes da autora: A Dolorosa Raiz de Mincondó e O País de Akendenguê.”

Um mundo feito de ilhas

Em 2011 publica O País de Akendenguê, "un texto que  metaforiza a África e retalha a vivencia poética de Conceição Lima desde a adolescência até ao presente", “o título aponta para uma partilhada perspectiva africana universalizante e, desse modo, define uma atitude oposta à que seria a de uma cultura colonial que visasse integrar-se numa cultura colonizadora”, escreve Helder Macedo para continuar: “O "país" de Conceição Lima é uma ilha. Mas afinal todos os continentes são ilhas, ou partes de ilhas, o mundo é feito de ilhas. A sua ilha é São Tomé, ponto de partida e de chegada numa viagem entre a memória e o desejo(...)". 

O livro está dedicado a Peirre Claver Akendengué o músico, filosofo e poeta pan-africanista gabonês e é, em palavras da autora, “uma viagem que parte da ilha e regressa à ilha, atravessando muitos territórios, atravessando arquipélagos, atravessando continentes, obviamente atravessando a África, com as suas dores, coma as suas perplexidades, com o imane da sua alegria”.

Em 2015 publicou Quando Florirem Salambás no Tecto do Pico, livro em que a situação política e social actual não deixa de estar presente por mais que o título parece sugerir um universo de ilha feliz

Miriam foi raptada, 
não voltará da escolar 
Com o seu lenço de seda e de confiança 
A caneta carregada de promessa 
E a pergunta nos invade e atravessa: 
Ainda nos poderemos amar? 
Salvar-nos-emos dos abismos da surdez?  
Aberta deixaremos a janela. (Quando Florirem 39) 
 

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