Opinión

Kissinger ressucitado (II)

Nos anos grisalhos da Guerra Fria, sugerir que um país estava a ser tomado polo comunismo era suficiente para o invadir, remover o seu governo —se for comunista ou nom tanto fai— e restaurar a normalidade capitalista. Quando a desapariçom do chamado campo socialista terminou com a escusa, a tentaçom foi apenas mudar «comunismo» por «terrorismo» nas rodas de imprensa. A invasom do Iraque em 2003 foi assim apresentada. Saddam Hussein devia ser removido por albergar terroristas e, de algum modo, estar relacionado com a destruiçom do simbólico World Trade Center. Só que milhons de pessoas por todo o mundo sabiam que o que na realidade havia por trás daquele tubinho de antrax com o que Colin Powell jogava no Conselho de Segurança da ONU, nom eram mais do que interesses privados no controlo do mercado do petróleo. As mobilizaçons contra aquela invasom —oficialmente guerra contra o terrorismo, que já começara com a caça ao homem numha nova invasom afegá— fôrom, em termos planetários, as mais maciças da história. Nom detivêrom a invasom, é claro. Mas servírom para que o império percebesse que, para evitar novos protestos e a queda de governos sujeitos a eleiçons periódicas, era necessário trabalhar publicamente a imagem do alvo antes de ir direito a destrui-lo.

O imperialismo do século XXI —o que saiu das areias iraquianas— incorporou, portanto, novas fases às suas agressons. Fases prévias que começam muitas semanas, meses ou mesmo anos antes do primeiro tiro, semeando a ideia de que o que está em causa som valores, e nom interesses geopolíticos ou económicos. A ponta de lança som, sem dúvida, os meios de comunicaçom que, após décadas de concentraçom forçada em cada vez menos maos, apresentam hoje um terrível panorama de dependências. Paga a pena perguntar-se o que pode haver de qualidade na informaçom que se nos apresenta quando apenas 8 corporaçons —Murdoch, Berlusconi, Bertelsmann e as agências AP e UPI, Reuters, France Presse e EFE— produzem, distribuem e, em definitiva, controlam à volta de 85% das «notícias» que circulam em ocidente. E também quanto é que pode haver de mínima imparcialidade em assegurar que umhas manifestaçons em Minsk som prova de que Lukashenko é «o último ditador da Europa», enquanto o Estado espanhol pode malhar em votantes e encarcerar dissidentes políticos sem por isso perder a imagem de «democracia exemplar».

Mas integrar os canais de comunicaçom social na indústria da agressom nom é a única sofisticaçom do imperialismo do século XXI — até porque esse caminho, a eclodir agora, começou há já muito tempo. Nom chega só com afirmar a caracterizaçom de Gaddafi, Castro, Asad, Maduro, Putin, Lukashenko ou Morales como líderes autoritários que devem ser removidos invocando um «dever de proteger» criado ex professo. É necessário ir além e conseguir o apoio de coletivos mobilizados em luitas diversas, aproveitando, ademais, a fragmentaçom de causas que padece a esquerda e a debilidade do movimento antiimperialista. Por isso a China aparece invariavelmente como país mega-poluidor, a Venezuela como paradigma de narcoestado, Gaddafi como senhor de um harém de virgens, Morales como pederasta, Putin como perseguidor de homossexuais ou Lukashenko como um machista nostálgico do KGB.

Este tipo de fórmulas, que, aliás, se repetem constantemente, nom só nos informativos como em forma de fake news que correm por grupos de WhatsApp e redes sociais, às vezes da mao de artistas famosos e outras de membros das nossas famílias, e também em forma de filmes e séries que consumimos maciçamente com a guarda baixa porque se trata, à partida, de simples entretenimento —este tipo de fórmulas, que nos chegam a todas horas, tenhem apenas um objetivo: que, ao bombardear Líbia, ao armar terroristas na Síria, ao submeter países inteiros a sançons e bloqueios criminais, ninguém pense que o que está a ser agredido é a soberania desses países, mas que o pederasta, o homófobo, o mega-poluidor ou o machista vam ser, por fim, removidos para salvar o povo. Mesmo se, para isso, o povo deve ser destruído primeiro. Kissinger pode estar orgulhoso.

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