Opinión

Passaportes de imunidade

É mesmo ingênuo pensar que somos anónimos. Passamos dias transferindo nossos dados para servidores (eufemismo eficaz que subverte quem serve e é servido); nossa pegada digital serve para rastejamento geográfico. E o medo de vendê-la, de usá-la sem consentimento e contra nós, é fundamentado.

A OMS oferece guia para decidir se a quarentena é ética e garantir que seja feita corretamente. O seu diretor disse: "Esta é uma pandemia controlável. Os países que decidem desistir de medidas fundamentais de saúde pública podem acabar com um problema maior e um fardo mais pesado [...] exige medidas mais severas de controle. Todos os países devem encontrar um bom equilíbrio entre proteger a saúde, impedir perturbações económicas e sociais e respeitar os direitos humanos”. A vice-presidenta europeia de assuntos digitais, apresentava seu plano da Europa recuperar o ganho pela China e EUA. Serão gastos

€20 bilhões na criação de espaço comum de dados na regulação da IA. Como na Espanha, funcionários de UK enxergaram "passaportes de imunidade" (PI) para indivíduos testados como imunes. A ideia é que aqueles que se recuperaram podem ser isentos de restrições e retornar quanto possível à "vida normal". Isso permitiria que pessoas "saudáveis" voltassem ao trabalho e se mover livremente. Noutras palavras, podem ser mesmo reconhecidas por possuírem atributos especiais e, à luz disso, receber um conjunto único de privilégios e talvez deveres.

O INE apenas se livrou das críticas à vigilância invasiva. A controvérsia que gerou o uso de dados telefónicos para realizar estudos de mobilidade está agora, no cenário sombriço do andaço, mais atenuada, especialmente se um novo controle ajuda a adiar a expansão. O BOE tira a ordem de fazer um widget, semelhante ao que já há na Catalunha e em Madrid, que permite auto-avaliar e receber dicas práticas que permitirão saber onde cada um está cada momento. O debate sobre a conveniência ou perigo de aplicar os modelos que rastreiam indivíduos para descobrir quem eles contatar, está-se a abrir. E ainda eu esteja obviamente influenciado pela imersão foucaultiana de biopoder, não podemos obviar as motivações e implicações éticas de rastejar para onde as pessoas vão e com quem interagem- algo que Estado e instituições vêm fazendo há séculos- é mais fácil com informações digitais.

Para quem não quiser continuar a ler, o conto é: para evitar a segregação distópica em tempos de crise, as melhores decisões de políticas sociais e económicas são melhor tomadas coletivamente, mesmo entre indivíduos isolados. Parece que a motivação pode ser relativamente bem-intencionada, já que alicerça nalgumas considerações positivas. Claramente, a ideia de distanciamento social é recebida com certa resistência por aqueles que valorizam muito a interação social, talvez até para quem é mais introvertido, caso os bloqueios delongar por mais tempo. A natureza social da humanidade levou a relatos nos que o isolamento prejudica nossa saúde mental e, mesmo tempo após o pico de infeções, irá trazer uma pandemia secundária de problemas de ansiedade ou estresse pós-traumático. Assim, a oportunidade de receber um PI -uma viagem de volta ao mundo social - seria um desenvolvimento bem-vindo para muitos, assumindo que não estamos sozinhos quando lá chegarmos. Outra motivação bem-intencionada do sistema de PI é, “obviamente”, ajudar a virar a maré da crise imediata e na correspondente desaceleração económica.

Em termos económicos, a situação parece igualmente incerta. Nos EUA atingiram 6,6 milhões de desempregados, apenas na semana passada. Também aqui, a oportunidade de receber um PI pode parecer importante, tanto para os essenciais quanto para os membros “menos essenciais” da força de trabalho, simplesmente para ressuscitar a economia. Deve ser óbvio, mas em confinamento, as necessidades das pessoas devem ser atendidas. Isso significa acesso a bens básicos e assistência médica e até mesmo compensação por perda de renda. Prima facie Singapura cobriu os custos de saúde para pessoas com COVID-19, uma das razões pelas quais a propagação foi considerada menos grave ali do que noutras partes. No entanto, como alguns argumentam de jeito persuasivo, arriscar vidas pelo bem da economia é profundamente perturbador -de facto, apresenta uma escolha falsa.

No entanto, não está claro se aqueles que o contraem e se recuperarem terão imunizado ou por quanto tempo. Embora testes bem-sucedidos de anticorpos tenham sido desenvolvidos na Itália, Alemanha e China, o consenso na comunidade científica é que, até o momento, ainda há muitas incógnitas sobre como recuperar da infecção. The Scientist anunciou que existem problemas com muitos dos estudos relacionados que agora estão para pré-publicação em revistas. Com tanta demanda, os artigos estão sendo relatados como evidência médica quando ainda nem foram selecionados ou revisados por pares.

Nenhuma evidência ainda da duração da imunidade e se os recuperados têm um nível suficiente de anticorpos para combater a SARS-2 pela segunda vez, tornando os testes e os certificados de imunidade implausíveis estratégias de saída. Se acontecer, seria possível argumentar a favor de indivíduos selecionados não apenas serem isentos de restrições de bloqueio, mas moralmente obrigados a marchar para a frente e ajudar. Pois, como um bom super-herói, saberiam que com "grande poder vem uma grande responsabilidade".

Um plano assim só pode ser considerado ético se mantivermos todas as outras medidas de distanciamento social para proteger os saudáveis e os vulneráveis. Isso pode ser extremamente difícil de fazer em certos cenários, como nos transportes públicos, em muitas empresas, nos barcos e nas escolas e universidades.

Faz qualquer sentido usar certificados de imunidade onde todos se conhecem? Deixe-me ser cético em relação à sua viabilidade a risco de criar ressentimento ao dividir a sociedade em dois grupos, um com “vida normal” e o outro não, o que seria um teste de coesão, talvez colocando em risco qualquer sentido remanescente de comunidade no momento presente ou talvez permitindo que a abrolhe a solidariedade como entre aqueles trabalhadores de A Peste de Camus, em meio a um andaço que assola a cidade de Oran.

Será que o algoritmo nos ajuda ou nos substitui? As democracias emprazadas não podem deixar a transformação digital nas mãos do tecno-poder, o das grandes empresas de tecnologia, porque ela não é neutra. Mas nem nas mãos de estados em deriva autoritária. Propostas assim são sintoma duma sociedade insegura. Se não houver um ambiente de equidade e legal que a regule, entraremos num modelo de sociedade que abala e perturba... Precisamos saber o que estamos a fazer, apesar de agora também não sabermos. E talvez avançar para uma nova geração de direitos fundamentais, porque não há abondo com os conhecidos.

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