Opinión

Com o experimento libertário no Kurdistão

Estamos obrigados a estudar o fenómeno da chamada ‘autonomia democrática’, que se tem desenvolvido em determinadas áreas do Kurdistão. Como quer que não sou em modo nenhum um experto na matéria, limitarei-me a enunciar, com todas as cautelas, três ideias muito gerais.

Estamos obrigados a estudar o fenómeno da chamada ‘autonomia democrática’, que se tem desenvolvido em determinadas áreas do Kurdistão. Como quer que não sou em modo nenhum um experto na matéria, limitarei-me a enunciar, com todas as cautelas, três ideias muito gerais.

1. Há divisão de opiniões no que diz respeito à origem da autonomia democrática. A versão mais estendida sugeste que Abdullah Öcalan, o líder, desde há tempo em prisão, do antigo Partido dos Trabalhadores do Kurdistão (PKK), teria  renunciado ao marxismo-leninismo por efeito da leitura da obra de Murray Bookchin, e nomeadamente dos textos deste sobre o municipalismo libertário; em consequência, teria promovido um giro radical na organização de muitas comunidades kurdas. É preciso sublinhar, porém, que a perceção dos anarquistas locais, diferente, bebe da ideia de que o movimento teria surgido de forma espontânea na base da sociedade kurda, de tal maneira que o PKK, que não  abandonou muitos dos seus hábitos autoritários e militaristas, se teria limitado a aceitar, fazendo-a própria, a nova realidade.

"É mais inteligente construir, desde abaixo e desde uma perspetiva libertária, uma sociedade paralela encarregada de substituir a instituição Estado e, com a passagem do tempo, talvez facilitadora, desde a revolta civil, da libertação do Kurdistão".

2. Em qualquer caso, há dous grandes elementos que explicam o nascimento da autonomia democrática. O primeiro é uma crua consciência, entre as comunidades kurdas, da dificuldade de lutar contra Estados que não duvidam em empregar a repressão mais dura; nessas condições parece ter-se chegado à conclusão de que é mais inteligente construir, desde abaixo e desde uma perspetiva libertária, uma sociedade paralela encarregada de substituir a instituição Estado e, com a passagem do tempo, talvez facilitadora, desde a revolta civil, da libertação do Kurdistão. O segundo é a certeza de que, em singular, os Estados turco e iraquiano nada saudável ofereceram aos kurdos: se -e esqueceremos agora a dimensão repressiva, importantíssima, da discussão- o primeiro é responsável duma dramática marginalização económica, o segundo, no que faz referência ao Kurdistão, é um espelho da corrupção e da dependência mais nojentas.

3. Nesse cenário agromou desde há três anos, em condições duríssimas, um experimento inédito no oriente próximo contemporáneo. Bem que com as suas limitações, parecem merecedoras de atenção as suas aportações à libertação das mulheres, à cancelação da confrontação étnico-religiosa, à desmercadorização de muitos espaços, à consciência do que acarretam as agressões ecológicas em curso, à luta contra a repressão e à defesa da cultura e da língua locais, sempre desde uma perspetiva de contestação do capitalismo, de democracia direta, de apoio mutuo e de autogestão. A ampliação do nosso conhecimento no que diz respeito ao  caráter deste experimento e o desenvolvimento da nossa solidariedade com os seus protagonistas parecem tarefas urgentes.

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