Opinión

Tinta de limão (Abril)

Os desenhos geométricos dos petroglifos estimularom interpretações tão formosas quanto indemostráveis. Por exemplo a de Bouza Brey, quem via nos círculos concéntricos de pedra uma imagen da chuva.

CÍRCULOS OCEÁNICOS

Os desenhos geométricos dos petroglifos estimularom interpretações tão formosas quanto indemostráveis. Por exemplo a de Bouza Brey, quem via nos círculos concéntricos de pedra uma imagen da chuva. Ch. Züchner, por sua parte, quijo ver nos desenhos reticulados uma primeira representação do minifúndio, e nos desenhos circulares, planos de casas e aldeias –com o que o costume de pôr no comedor uma fotografia aérea da casa e os arredores teria uma longuíssima tradição.

"Dá ganas de imaginar que os petroglifos são um programa político em pedra: o dos Círculos Oceánicos de Gandhi ou, como dizia Adrián Solovio em "Arredor de si", “mellor do que estado, cada terra um ceive conjunto de municipios e ninguém dominava ninguém”.

Ao ver os impressionantes conjuntos da lage das Rodas do Lombo da Costa, ou os das Roças Velhas de Cotobade, com essas sucessões rizomáticas de círculos concéntricos, dá ganas de imaginar que os petroglifos são um programa político em pedra: o dos Círculos Oceánicos de Gandhi ou, como dizia Adrián Solovio em Arredor de si, “mellor do que estado, cada terra um ceive conjunto de municipios e ninguém dominava ninguém”.

MAX WEBER E AS MARÉS

O sociólogo alemão, que diferenciava as administrações não autoritárias –onde a soberania não está separada do corpo social- das administrações de representantes, previnha com lucidez o colapso dos assemblearismos que não conseguem conjurar os partidos: “A democracia direta exenta de dominação e a administração honorária só subsistem com caráter genuino na medida em que não apareçam partidos como formações duradouras que lutem entre si e procurem a apropriação dos cargos, pois tão pronto como isto ocorre o chefe e o quadro administrador do partido vencedor na luta – quaisquer que sejam os meios usados- constituem uma estrutura de dominação a pesar de que conservem todas as formas de administração até então existentes”. Seguramente isto explique a excelente saúde dos 318 kontzejuak de Araba que, a diferença das outras “entidades locais menores” do Estado, são um exemplo de auto-governo vizinhal com ampla participação: E é que foram os únicos que conjuraram a sua participação.

O MATRIMÓNIO DE PROVA

Chega a Estremera uma carta de Luou, cheia de ânimos, fotografias de mascaradas quíchuas, e um feixinho de cartas carcerárias de Gramsci. Em uma delas, Gramsci comenta a Giulia cum costume sexual sardo: “É vero che in molti paesi della Sardegna esisteva prima della guerra (adesso non so più) l’unione di prova, cioè la copia si sposava sulo dopo aver avuto un figlio; in caso de infecondità ognuno ridiventava libero (ciò era tollerato dalla Chiesa). Vedi che differenza nel campo sessuale che pure ha tanta importanza nelle caratteristiche delle cosi dette “anime” nazionali”.

O casamento de prova também se praticou na Galiza, e a finais do século XIX Cándido Salinas e Antonio Francisco de la Iglesia perguntavam por ele no Cuestionario del Folk-Lore Gallego, na questão 267: “Creeencias referentes a la virginidad, á sus signos, á su valor moral: aprecio que se hace de ella en las campiñas: si hay costumbre de experimentar antes para estar seguros de tener sucesión”. Por desgraça, não se consevam respostas, mas há um outro inquérito etnográfico, feito por Antonio Pereira Poza há uns anos, que dá alguma pista: em Cambados “era frequente que a voda não se levasse a cabo até que ficasse grávida a mulher. Conta o informante que conheceu o caso de um varão que tinha azoospermia que convivia con quatro prometidas distintas na espera da ansiada gravidez”.

DOUTOR PORTEIRO GAREA

Já logo vai para um  século que Lois Porteiro Garea repousa, mui discretamente, a uma beira da igreja da Ponte Carreira. Embora foi uma pessoa chave na configuração do nacionalismo irmandinho, ao não se prodigar na literatura apenas é reconhecido hoje. Como era habitual no galeguismo da época, defendia a democracia paroquial: “en cada lugar debe haber un representante del alcalde de barrio; en cada parroquia, un alcalde de barrio o pedáneo, y un Consejo de vecinos –como lo hay efectivamente-, que se ocupe en la composición de caminos, aprovechando leñas y demás”; também no programa com o que se apresentou às eleições de Zela Nova pedia o “reconocimento d’as parroquias n-o común de veciños como donos de montes común, alí donde vén iso sendo costume, con xuntas de veciños”. Ainda –e isto é menos conhecido- foi uma pessoa com um notável talento para a medicina. Veja-se senão a receita que preparo unas páginas de El Radical (30 de julo de 1914) contra a molesta doença da sarna caciquil: 

Despáchese: 

Mangos de pau de freixo…………25

Mocas de cerna de carballo……..13

Unguento de toxo vello………….50

Xarabe de pico calado………………500

                                 o cantidad suficiente

Hágase según arte

DR. ARARÁS DREITO

Uso externo –Friegas por la noche-

“Agítese al usarla”

A PAH DA GALIZA CONSUETUDINÁRIA

A economia moral das multidões foi capaz de impor na Galiza uma ferramenta legal, a “graçosa”, que em caso de que uma família não pudesse afrontar as suas dívidas, e sendo-lhe vendidos os seus bens raízes em poja, lhe permitia um prazo de trinta anos para recuperá-los polo mesmo preço ao que foram vendidos. Bernardo Herbella de Puga, em Derecho práctico y estilos de la Real Audiencia de Galicia (1844), consideraba este costume fundado “em razão, pois não vai contra a lei de Deus, Direito Natural, sem bem comum, nem foi introduzida por erro; porque é notória a pobreza que, em geral, aflixe os habitantes da Galiza, o seu nenhum comercio e excesivas rendas que pagam polos bens que cultivam, como que são forais os mais deles: se a um pobre lavrador se lhe põe à poja um terreno, já lhe terão vendido primeiro os bens móveis”. Por isso a graçosa “convém à maior parte dos habitantes do Reino da Galiza e por esta convenência geral fai-se razoável e justo. Resulta que o costume de conceder tal graçosa dos trinta anos na Galiza tem todos os requisitos e circunstancias que o constituem em vigorosa força de lei e é capaz de derogar as que se tiveram estabelecido antes dela”.

PIED-NOIRS E MONTE COMUNAL

Os textos dos colonialistas são um comovedor testemunho da sua benemérita ativida. Veja-se senão o infinito amor paternal de Le Tell, quem em 1865 desejava o mehor para Algéria: “Que todos, o soldado com a sua espada, o colono com a sua carreta, o crego com o seu rezo, o indígena com a sua submissão; que todos formem um feixe destas forças e Algéria atingirá os destinos que Deus, sem dúvida, lhe reserva”.

Vaissière, por sua parte, gostava de uma linguagem mais direta nas suas teorizações. Em 1863 postulava a destruição da terra em mão-comum como “a máquina de guerra mais eficaz que se tenha podido imaginar contra o estado social indígena e o instrumento mais potente e mais fecundo que se tenha podido pôr em mãos dos nossos colonos”. Bem se pudo ter inspirado Vaissiêre dos pied-noirs do Governo espanhol, que já em 22 de maio de 1848, emitira uma real orden que declarava “inadmisible el principio de que los vecindarios por sí y con independencia absoluta de los Ayuntamientos y del Gobierno pueden disponer omnímodamente de dichos montes llamados del común de los vecinos”.

Mais de século e médio depois, uma grande parte do país continua a resistir à expropriação dos pied-noirs: “dos areais de Hio até o cúmio de Pena Trevinca, das ribeiras do Sur à serra do Larouco”, nas formosas palavras de Xan Colazo. Mais de 700.000 hectares de estado social indígena que defender, metro a metro, como Terra libertada.

ENCERRAR O DEVIR

Em alguma parte do Folie et déraison, Michel Foucault desbota qualquer possibilidade de chegar a certezas metafísicas de não ser através de um experimento éticamente irrealizável: isolar grupos de crianças para educá-las em sistemas metafísicos diferentes, e depois comparar. O exagerado etnocentrismo da filosofia impedia a Foucault reparar na exuberante biodiversidade metafísica do mundo, povoado por milhares de culturas com ontologías radicalmente diferentes da nossa; eis a anti-chomskiana gramática pirahã, as metafísicas caníbais estudadas por Viveiros de Castro, e mesmo a razão galega sistematizada por Marcial Gondar. Uma destas metafísicas fascinantes é a do “deleuziano” povo Hópi, em cujas orações os acontecimentos não se localizam em referência ao tempo senão ao “ser” ou ao “devir”.
As hordas de turistas que hoja assaltam San Francisco não perdoam a visita de rigor a Alcatraz, tornada parque temático penitenciário. À saída podem comprar postais de presos tão ilustre como Al Capone; também uma com os dezanove líderes hópi que foram encarcerados polo Governo colonial dos EUA, condenados por não escolizarem as suas crianças na escola branca, pretéritos perfeitos e futuros impossíveis da língua inglesa.

"O poder, que sempre impõe os seus principios de visão, apaga os seus próprios pâssaros de maneira que, como Tippi Hedren, as feministas são histéricas com mania persecutória, os povos árabes uns bárbaros desagradecidos e, naturalmente, as independentistas galegas umas viziosas do protesto e a prisão".

TIPPI HEDREN

Há já uns anos que um cineasta pegou no Birds de Hitchcock para fazer um experimento: com minúcia de iluminador foi apagando, fotograma a fotograma, as bandadas de pássaros enlouquecidos que, no filme original, atacavam as pessoas. Assim, Tippi Hedren desfazia-se em aspaventos perante um ataque inexistente; assim, Tippi Hedren parecia uma histérica, estereótipo masculinista da mulher que se queixa por nada. O poder, que sempre impõe os seus principios de visão, apaga os seus próprios pâssaros de maneira que, como Tippi Hedren, as feministas são histéricas com mania persecutória, os povos árabes uns bárbaros desagradecidos e, naturalmente, as independentistas galegas umas viziosas do protesto e a prisão.

GRAMSCI E O SURF

Desde a frivolidade filosófica, a atualidade política é um magnífico culebrão –as otimistas dirão thriller- gramsciano. 
Por uma parte,  os enfants terribles de Laclau. Se o filósofo argentino imprimira um giro linguístico a Gramsci, colocando o discurso no centro da operação hegemónica, os seus seguidores espnahóis apuraram a viragem até as últimas consequências: o nacional-popular é o tevé, il poppolo della televisione, a política tornada surf. Mas, adverte Antonio Puente, “ano e médio é tempo suficiente para acabar na trincheira embora seja de forma involuntária”; o pesadelo da guerra de posições; o mar sem ondas.

Pola outra, as invisíveis sachadoras da periferia. Um molesto Raul Zelik pergunta-se como pode ser que, agora que tanto se fala de Gramsci, ninguém veja nem valorize a incrível hegemonia cultural construída pola esquerda abertzale, do tapeio à recuperação do êuscaro, do cooperativismo à música. A política, enfim, como agricultura, fouce e sacho.
E na Galiza? Na Galiza as trincheiras da monocultura eleitoral, sem criação de contra-hegemonia, tornaram-se terrivelmente profundas e enlamadas. Assim é que um amigo asegura que Underground, o filme de Kusturica, é a metáfora perfeita do nacionalismo galego.

LÍNGUA SUSTENTÁVEL DO MEU POVO

Da confusão entre o sustentável e o rendível surge a miragem do reintegracionismo como estratégia capitalista para salvar a língua. Mas o reintegracionismo é, sobretudo, uma maneira realista de tornar o galego sustentável, face o modelo que Valentim Fagim chama de língua impossível. A estratégia oficial, como as sementes comerciais, só dá fruto através de ingentes insumos de fertilizantes sintéticos. Por baixo dos discursos do NH como ventagem galega nos mercados, o certo é que o reintegracionismo está  a funcionar como uma modesta permacultura capaz de sustentar uma vida em galego. Seria desejável, pois, ajustar o discurso à prática, para o que temos, no caso navarro, excelentes exemplos.

A começos de ano Errigora conseguiu 151.000 euros para o cultivo do êuscaro em Erribera –na “zona não bascófona” do apartheid linguístico navarro- através da venda local de doze mil cestas de produtos ecológicos, reforçando os vínculos entre as soberaniaas alimentária e linguística. Em outubro a ikastola Baztan de Elizondo acolherá a vindoura edição do Nafarroa Oinez, a festa do êuscaro em Navarra. Após reflectirem sobre o impato ecológico do evento, decidírom compensar o meio ambiente com a plantação de um bosque comunal de Carpinus Betelus e Prunus Lusitania, espécies em perigo de extinção. Será o quinto Oinez Basoa tras a criação, em edições anteriores, de um bosque de tipo ocidental em Arbizu, um meditarrâneo em Tafalla, um de ribeira em Tutera, e um outro comestível em Zangonza, onde reflorestárom um antigo vertedouro. No caso de Baztan, aliás, vão recuperar a tradição perdida do minditze, rehabilitando invernadoiros construídos em auzolan (em mão-comum”; “em concelho aberto”) para plantar e cuidar árvores para a comunidade.

"A jornada de trabalho coletivo coroava-se, após a ceia, com os alegres desafios poéticos dos brindes os loias que, aliás, conjuravam com humor as possíveis frições da jornada. Ainda hoje moramos em muitas dessas casas, recordatorio vivo de quanto pode um povo e quão pouco necesitamos a Fadesa e companhia, especuladores que enchem o país de casas vazias e urbanizações que, como se queixava Chesterton, “se assemelham a uma fileira de tumbas adosadas”.

SANGUE MENSTRUAL COMO ARMA DA RESISTÊNCIA

“Nada ficará em pé perante a gargalhada
vaginal, nem seguer o betão armado”.
Henry Miller, Trópico de Capricórnio

Tanto carcereiros quanto presos, europeus como árabes, africanos ou asiáticos… a ideologia mais transversal de prisão é, sem nenhuma dúvida, a patriarcal. Talvez por servir de reafirmação pessoal aos homens submetidos a uma humilhação quotidiana, por aquilo que advertia Flora Tristan de que o homem, mesmo “o mais oprimido, pode oprimir outro ser como é a mulher. Ela é a proletária do mesmíssimo proletário”.

Há umas semanas a conversa do pátio derivou ao tema do poder maléfico do sangue menstrual. Na Galiza há uma ampla tradição de magia popular com sangue menstrual, em parte recolhida no Ciprianillo, mas a discusão não ia precisamente polos vieiros distanciados da etnografia. Um cigano espanhol e outro romanês descutiam com tal ardor sobre mortes e impotencias por mor destes feitos que nem me atrevim a tirar de retranca.

Remoendo no tema acordei-me de um artigo sobre medicina popular na Revista Galega de Antropoloxía, que informava de um remédio contra as verrugas (aprendido em Ordes?) usando o sangue menstrual, mas, quase com certeza, porque obecederia à lógica simbólica de combater o mal com o mau. Não haverá, ainda que só seja um, algum exemplo de valorização positiva do sangue menstrual? Joan Coromines registou um velho costume marinheiro consistente em atar aos maiomotes das galeiras trapos menstruosos da mulher amada, com a esperança de atraer ventos favoráveis. O valenciano médico Roig, autor a meados do século XV de um Livro das mulheres, burlava-se destas bandeiras matriarcais: “més al maymó/ de les galeres, bon vent no esperes…”.

Mas as mulheres também se reapropriaram da negatividade que o patriarcado asignou ao ménstruo, tornando-o arma da resistência. T.O’Keefet recorda como as presas irlandesas se defendiam dos carcereiros británicos com sangue menstrual; e o Libro de Manuel, crónica sesenta e oitista de Cortázar, recolhe a rebelião de umas raparigas internas em um colégio de freiras, que converteram as compresas em cocktails molotov.

MÁS PESSOAS

Em 1675 o povo bretão revolta-se contra a suba da taxa do sal, a chamada gabelle, e redige um Code paysan que dá contas dos seus acordos: “Está proibido, sob pena de correr baquetas, dar refúgio à gabela e aos seus filhos… polo contrário, está permitido fazer-lhe de tudo, como se faria um cão raivoso”. É como se os camponeses bretões pensassem que a gabelle fosse uma má pessoa, ainda que o historiador Peter Burke opina que “o Code pudo ter sido falsificado engadindo detalhes ‘folclóricos’ para fazer que o movimiento parecesse absurdo”. Seja como for, na Galiza tampouco faltam exemplos de pessonalizações dos inimigos abstratos.

Delfín de Mocende, aguardando um dia polo autocarro de Bretonha no Castro do Vento, topou-se com uma espécie de mouro e com um sombreiro falador que lhe figeram pensar nos tesouros. Tanto matinou neles que rematou sonhando de noite com um grande caldeiro de ouro posto ao lume, e que se alimentava das galinhas que cozia. “Já havia algo de amizade entre o caldeiro e servidor, quando chegou o Estado e levou o caldeiro e as trépias, e só ficaram de mostra os ossos da galinha”. Com muito respeito, e deixando claro a Delfín que não se burlava dele, Cunqueiro perguntou como é que era o Estado. “O Estado” – respondeu Delfín- “era um sombreiro, um sombreiro mui grande, como a capa de tea de uma mesa-camilha. Abriu a boca e papou tudo. Cuspiu os ossos que ainda ficavam de galinha branca, e ainda uma galinha negra, inteira, com prumas. Olhei a ver se tinha o ovo, mas não. O Estado, é dizer, aquilo, ia tocando o tambor no caldeiro monte abaixo”.

O CARRETO

Lembrava Vicente Risco que em Ourense, sendo ele neno, na parede da cas El Parador del Norte um letreiro proclamava com estupidez citadina: “Ciudad de Orense, capital de provincia, se prohíbe cantar los carros”. Dita lei fazia calar nossos ouvidos do estrondo dos automóveis”.

O carro chilhão do país era, junto com os sinos ou os foguetes, uma das expressões sonoras da identidade indígena. O refraneiro compara a tristeza da aldeia sem carro à da casa sem mocidade, e o cancioneiro recorda comom se molhava o eixo, antes de atravesar outra paróquia, para exibir o canto da própria. Esse som, como sinala X. M. González Reboredo, berra Nós, um Nós paroquial e comunitário que apenas se apaga, pasando unto polo eixo, quando a clandestinidade o requeria. Música telúria, etnofonia que a Risco lhe parecia “a voz mesma da paisagem; é a terra que canta no eixo do carro, que foi arrancado dela e alimentado com a sua substância, que vai exalando nesse canto a vida que da terra recebeu; é o canto da árvore, que vai morrendo lentamente, no trabalho diário, lento e tranquilo, trabalho que se canta, que se acompassa com uma melodia contínua e infinita”.

Mas é no carreto que o canto do carro se torna hino da ajuda mútua. Em uma manhã de inverno, no Zebreiro, uma orquestra de carros surpreendeu o antropólogo Lisón Tolosana. A lento ritmo bovino, oito carros atravessavam a aldeia conduzidos por labregos solenes e dignos. A instituição comunitária do carreto –‘carretada’ nas comarcas atlánticas- ajudava de maneira gratuíta no construção de novas moradas, transportando material. A jornada de trabalho coletivo coroava-se, após a ceia, com os alegres desafios poéticos dos brindes os loias que, aliás, conjuravam com humor as possíveis frições da jornada. Ainda hoje moramos em muitas dessas casas, recordatorio vivo de quanto pode um povo e quão pouco necesitamos a Fadesa e companhia, especuladores que enchem o país de casas vazias e urbanizações que, como se queixava Chesterton, “se assemelham a uma fileira de tumbas adosadas”.

HISTÓRIA DAS NINGUÉM

“los nadie, los hijos de nadie,
los dueños de nada, los nadie, los ningunos,
los ninguneados (…)
que no tienen nombre, sino número,
que no figuran en la historia universal,
sino en la crónica de sucesos de la prensa local”

Eduardo Galeano

Nas margens da história, como silveiras às beiras da autoestrada, pequenas tribos de ninguéns desafiaram a normalidade da sociedade burguesa luitando por sobreviver. Em Compostela os pilhos, miudos que se juntavam na Quintã contra o abandono mais absoluto. Em Ourense os grazos, mais conhecidos pola literatura de Francisco Álvarez de Novoa e, subretudo, polo popular Os graxas de Burga de Valentín Lamas Carvajal, onde esta rapaziada se negava a ser vítima ao berro libertário de “tudo é de todos”, com o que acabaram enfrontando-se a um piquete de soldados. 

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