A revolução morreu, viva a revolução

Se atentarmos apenas àquilo que se celebra, oficial e protocolarmente, nesta data maiúscula, então do 25 de Abril se pode dizer que parece ter vindo para ficar. O regime democrático, cujas grandes façanhas e ímpares virtudes vêm sendo incessantemente relembradas de há cerca de um ano a esta parte -a massificação escolar e a mobilidade social que (apesar de tudo) lhe está associada; o serviço nacional de saúde e a longevidade sem precedente dos portugueses; a generalização de um certo nível de conforto material que, magro embora quando comparado com o resto da Europa (desde logo a vizinha Espanha), nem por isso deixa de brilhar quando contraposto à miséria esquálida do passado ditatorial– goza de boa saúde e não encontra, da esquerda à direita, quem o conteste. No Parlamento português, o 25 de Abril é celebrado por todas as bancadas, incluindo a do partido de extrema-direita (Chega). As divergências começam porém a manifestar-se logo que se passa ao significado substantivo da data, com os partidos situados à direita do espectro político a introduzir nos seus discursos uma sucessão de adversativas. A ritual declaração de amor à liberdade vê-se então acompanhada por múltiplos "apesar de", que dizem respeito tanto ao que ainda está por fazer como ao que foi efetivamente feito e se pretende agora reverter, leia-se, tudo o que permanece ainda na esfera do Estado após décadas de privatizações. Como esse tudo já não é muito, liquidadas que foram as nacionalizações do processo revolucionário e a Reforma Agrária, procura-se agora demonstrar que a promessa da democracia só será plenamente cumprida quando tiver sido privatizada a saúde, o ensino e a segurança social, juncando de cravos vermelhos a via portuguesa para o neoliberalismo. A expressão idiomática que capta com maior precisão este dispositivo retórico é "o 25 de Abril não tem dono". 25 de novembro de 1975 Outro tropo discursivo que a direita portuguesa não dispensa diz respeito ao 25 de novembro de 1975, data em que os oficiais da ala esquerda do MFA foram saneados dos principais centros de decisão político-militar, encerrando definitivamente o processo revolucionário. Os últimos anos foram assinalados por insistentes tentativas de fazer equivaler o 25 de Novembro ao 25 de Abril em termos de importância histórica. Procura-se por essa via consagrar oficialmente a tendência, já antiga, de contrapor a construção do regime democrático ao período revolucionário de 1974-75, e não ao regime fascista que o precedeu, enfatizando as ameaças totalitárias vindas da esquerda radical, de forma a deslegitimar o antifascismo como cultura política dominante. A esse nível, a estratégia adotada pela direita portuguesa na disputa pela memória histórica tem sido relativamente consistente ao longo das últimas décadas, renunciando a um embate frontal em terreno aberto -no qual seria facilmente confrontada com os inúmeros laços e continuidades que a ligam à ditadura derrubada há cinquenta anos– em favor de uma guerrilha semiótica em torno do significado da democracia, que se procura reduzir a uma equação simples, do outro lado da qual está a propriedade privada, a ordem pública e o sufrágio eleitoral. Ninguém tem de ser "contra" o 25 de Abril, uma vez que o significado da data foi progressiva-mente esvaziado de todo e qualquer conteúdo antagonista, ou seja, revolucionário A estratégia tem sido relativamente bem sucedida, beneficiando do facto de a esfera pública se confundir cada vez mais com a esfera televisiva, bem como da submissão do alinhamento noticioso às conveniências de uma intrincada teia de poderes constituída por grandes grupos económicos, importantes escritórios de advogados e nebulosos fundos de investimento. Num país onde praticamente ninguém lê jornais, quem ligar a televisão em horário nobre dificilmente se arriscará a ouvir alguma coisa que destoe do grande consenso hegemónico neoliberal. No simulacro de debate que daqui resulta, é tanto mais fácil chamar 'Socialismo' à progressividade dos impostos, ou 'Marxismo cultural' a políticas de afirmação da igualdade de género. Ninguém tem de ser "contra" o 25 de Abril, uma vez que o significado da data foi progressivamente esvaziado de todo e qualquer conteúdo antagonista, ou seja, revolucionário. A isto tem respondido a esquerda como é seu apanágio, escavando uma trincheira para nela se abrigar, enquanto grita "25 de abril, fascismo nunca mais!" ou canta o refrão de "Grândola, vila morena". Com mais protesto ou menos contestação, vivemos numa época -definida com certeira presciência por Francis Fukuyama, em 1989– em que se tornou mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É por isso plenamente compreensível que o centro-esquerda, ou seja, o Partido Socialista e o Livre, inscrevam o 25 de abril numa narrativa de progresso rumo à integração europeia, destacando o papel de Mário Soares enquanto 'pai da democracia'. É igualmente previsível que o Partido Comunista Português aproveite a data para fazer valer os seus galões antifascistas e assinalar a importância das "conquistas de Abril", ou que o Bloco de Esquerda a evoque sob o signo da nostalgia, sublinhando a marca genética deixada pela revolução no regime democrático. O que ficou, no Portugal de hoje, do 25 de Abril? Em todo o caso, tendo escolhido como ofício o de historiador e dedicado ao assunto não poucas horas de estudo e trabalho, gostaria de partilhar uma nota dissonante. Faço-o retomando a pergunta original: cinquenta anos depois, o que ficou, no Portugal de hoje, do 25 de Abril? A resposta é simples: muito pouco ou quase nada, se estivermos a falar do turbulento processo revolucionário que se seguiu ao golpe militar. Porque caminhou a par e passo com um processo de transição democrática, é fácil ignorar os traços mais salientes da revolução portuguesa de 1974-75, essa vaga tumultuosa de contestação, insubordinação, auto-organização e coletivização, que não só empurrou o Movimento das Forças Armadas para lá dos seus propósitos iniciais -forçando-o a extirpar pela raiz toda e qualquer reminiscência de fascismo e colonialismo- como abalou profundamente os alicerces do capitalismo português. Durante dezoito meses, as ordens foram desobedecidas, as proibições desafiadas, as leis permaneceram no papel e a ficção da soberania permaneceu suspensa, enquanto inúmeras empresas e terrenos agrícolas eram ocupados, entravam em autogestão ou se viam nacionalizados sob controlo operário. Tudo isto não pode ser menos do que inaceitável visto a partir de 2024, desde logo porque permite vislumbrar a possibilidade de um outro mundo e de uma outra vida, destoando manifestamente em relação à solenidade insípida das comemorações oficiais. Em 1999, quando o realizador Sérgio Trefaut dirigiu um documentário sobre filmes produzidos durante o processo revolucionário de 1974-75 -como Torre Bela, de Thomas Harland (1977) e Cenas da luta de classes em Portugal, de Phillip Spinelli e Robert Krammer (1977)- intitulou-o, sugestivamente, Outro país. Se vinte e cinco anos depois a sociedade portuguese parecia tão diferente, imaginará facilmente o leitor que cinquenta anos a tornaram quase irreconhecível. Os trabalhadores rurais filmados por Harland, que invadiram a herdade do Duque de Lafões, ou a vendedora ambulante entrevistada por Krammer e Spinelli, que ocupou uma casa no centro de Lisboa, não terão migrado para parte incerta. Mas os seus gestos e palavras deixaram de carregar em si aquelas qualidades extraordinárias –firmeza, audácia e fulgurante inteligência – que acompanham as classes subalternas quando estas se fazem arquitetas do seu próprio destino. Tanto basta para que se tenham tornado um indistinto pano de fundo, como um postal a preto e branco que carrega em si a memória de um tempo longínquo. A revolução morreu. Viva a revolução.