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Crónica desde o Donbass: Como dois jornalistas acabaram na linha da frente em Mariupol

Esta cidade prepara-se para a última batalha pelo controlo da zona industrial, o último reduto de milhares de soldados ucranianos.
Vista de Mariupol desde unha xanela. (Foto: Bruno Amaral de Carvalho)
photo_camera Vista de Mariupol desde uma janela. (Foto: Bruno Amaral de Carvalho)

Eu pus como objectivo ver o Mar de Azov. Sabíamos que o caminho na direcção de Mariupol estava encerrado à população civil devido ao trânsito de tropas russas. Era muito provável que o dia resultasse num fracasso mas decidimos arriscar. Carregado de maços de tabaco, um dos melhores amigos de qualquer repórter numa guerra, e à boleia com um oficial do exército separatista de Donetsk, o Lada soviético conseguiu superar com êxito a missão de convencer os soldados de cerca de dez postos de controlo a deixar-nos passar.

Já dentro de Mariupol, embrenhámo-nos no bairro que colide com o teatro. Com um jornalista italiano, aventurámo-nos nas imediações e contactámos com a população enquanto soavam disparos e explosões perto do porto. Uma família que vive numa cave de um albergue destruído convidou-nos a tomar chá. Os quatro filhos olhavam para nós com curiosidade enquanto a chaleira aquece em cima de uma grelha improvisada com lenha dos destroços. A manhã é fria. Chega um vizinho que vive no mesmo edifício e convida-nos a subir para vermos o mar a partir do último andar.

Ruslan aponta o dedo para outro prédio: "Era dali que o Batalhão Azov disparava"

Não podemos ir ao telhado porque nos podem confundir com franco-atiradores. É numa janela do sexto andar que Ruslan aponta o dedo para outro prédio. "Era dali que o Batalhão Azov disparava", explica. Do mar, nem sinal. O nevoeiro é tanto que é impossível vislumbrá-lo no horizonte. Então, propõe-nos levar o mais próximo possível do mar. Antes, traz várias tábuas de uma cama destruída para alimentar o fogo. Atravessamos as ruas com todo o cuidado, afastados uns dos outros, e vamos passando algumas barreiras militares. Mas nem sempre os maços de tabaco resultam. Somos obrigados a dar meia volta e o nosso guia decide partir.

Sinais de vida

Entregues à nossa sorte, vamos caminhando. Há um cadáver na rua embrulhado num cobertor. Seguimos e encontramos alguns civis que nos querem mostrar casas destruídas, pedir medicamentos e que contactemos as famílias que estão no exterior de Mariupol. É o caso de Mariana que tem uma filha em Paris. Quer dizer-lhe que está viva.

Outra mulher culpa os russos pela destruição e aponta para uma casa em ruínas. Outros apontam o dedo aos ucranianos. Em frente a uma antiga sede da polícia, várias pessoas exaltam-se e acusam o exército ucraniano de, em 2014, ter massacrado 30 agentes que se recusaram a obedecer às ordens das novas autoridades legitimadas pelo golpe de Estado. Kiev mandou tanques e o edifício foi bombardeado.

Por fim, o mar

Tentamos novamente ver o mar seguindo um caminho alternativo. Começamos a ver um azul que se distingue do céu. Conseguimos. Do porto, prossegue a artilharia pesada e ligeira. Do lado direito, há uma parede que tem um mural com o símbolo do Batalhão Azov.

Esta cidade foi, até à chegada das tropas russas e separatistas, um bastião militar desta unidade neonazi da Guarda Nacional ucraniana. Agora está confinada ao enorme complexo metalúrgico Azovstal, uma instalação fabril com 11 km2 que chegou a empregar 18 mil operários. Com dezenas de túneis e diferentes tipos de construções subterrâneas, é este o cenário da última batalha de Mariupol.

Na linha da frente

Tentamos ver uma maneira de nos aproximarmos desta zona industrial para recolher imagens. Ao longe, vemos uma pequena estação ferroviária e uma carrinha de caixa aberta. Pensamos que pode ser uma boa ideia fotografar a partir dali. Quando nos aproximamos, passa um carro pintado com um 'Z' e um soldado grita enquanto mete o dedo na cabeça: "Vocês estão malucos". Do outro lado da linha férrea, outro soldado assobia e pede para corrermos para ali. Finalmente, explicam o que se passa. Não sabem como mas conseguimos chegar ao posto mais avançado das tropas russas antes do Batalhão Azov. Espantados, uma dezena de soldados quer conhecer estes jornalistas estrangeiros que acabaram ali junto à linha da frente.

Então, convidam-nos a ver alguns RPG-7 que capturaram aos ucranianos. Pedem-nos toda a cautela. Podemos ser alvo de disparos do outro lado de um canal que separa o Azovstal deste embarcadouro. Avançamos e entramos numa casa. Mostram-nos dois cadáveres de combatentes da Guarda Nacional ucraniana e fazem questão de mostrar-nos os documentos que o comprovam. Quando regressamos, apontam para a carrinha de caixa aberta: "Cuidado, está armadilhada".

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