En exclusiva para 'Nós Diario'

Crónica desde o Donbass: "What the fuck"

As mortes acumulam-se em Donbass, no leste da Ucrânia, à medida que se intensificam os combates nesta região separatista. De um e do outro lado da linha da frente, entre soldados e civis, são muitas as mães que choram os seus filhos.

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photo_camera Un almacén de armamento. (Imaxe: Bruno Amaral de Carvalho)

À volta da mesa, vários homens erguem copos de vodka. Não é uma festa. Na cabeceira, uma mulher de uniforme tenta conter as lágrimas enquanto olha para o retrato de um jovem no fundo da sala. É o filho que perdeu a vida há uma semana em combate. "Peço que não tire fotografias", explica esta tenente coronel do exército de Donetsk, que prefere não identificar-se. 

No ritual dos brindes que se seguem os copos não se tocam. "É falta de respeito" na tradição cristã ortodoxa. O primeiro brinde faz-se ao soldado caído. "O segundo brinde é por todos os mortos, o terceiro por aquilo que quisermos e o quarto para pedirmos que nenhum dos nossos amigos tenha algum dia de brindar pela nossa morte", explica um dos presentes.

No fim desta pequena homenagem, a importante oficial que acaba de perder o filho de 23 anos recorda que o soldado morto está ali porque ao nono dia os espíritos estão em casa e só partem definitivamente ao décimo quarto dia. "Ele está aqui connosco. Morreu como um herói, a combater o fascismo", eleva a voz enquanto brinda à memória do jovem de 23 anos. Termina a homenagem com a consigna espanhola "No pasarán".

Entre as razões que uns e outros encontram para justificar a sua posição, a guerra continua a encher cemitérios

À saída, um dos homens, Andrei Kochetov, secretário-geral do sindicato de pequenas e médias empresas desabafa em inglês "What the fuck. Tanta gente a morrer", desabafa.

Morrer noutro país

De há oito anos para cá, desde que em 2014 começou a guerra civil, houve mais de 15.000 vítimas entre civis e soldados. As homenagens sucedem-se porque os corpos continuam a chegar. Uma semana depois de o militar de 23 anos ter caído em combate, o italiano Edy Ongaro, conhecido na linha da frente como Bozambo, perdeu a vida, segundo fontes no terreno, depois de se deitar em cima de uma granada para salvar a vida dos seus camaradas.

São as informações obtidas até ao momento pelo italiano David Cacchione, há cerca de uma semana na região controlada pelos separatistas para entregar material médico para apoiar a população civil. Explica que pode ser difícil transportar os restos mortais para Itália, uma vez que as autoridades de Roma não reconhecem os separatistas de Donetsk.

Ataque inutiliza escola

Donetsk não é uma cidade pequena. Aqui viviam 2 milhões de pessoas antes da guerra. Era a maior capital do leste da Ucrânia, na mais industrializada das regiões. São sete da manhã e ouve-se um grande estrondo. Quem conseguiu dormir com as explosões durante a noite, terá acordado com esta. Pouco depois, chega a informação de que um projéctil de um obus atingiu uma escola nos arredores de Donetsk.

À chegada ao local, há vidros por todas as partes e janelas partidas. Um funcionário chama a directora da escola que de imediato quer mostrar o interior do estabelecimento de ensino. Dentro, há vários homens e mulheres que fazem trabalhos de limpeza para retirar destroços e tapar as janelas com placas de madeira. Subindo umas escadas, a directora aponta o dedo para uma zona completamente destruída. "Vejam como isto ficou. Imagine que estavam crianças na sala de aula", afirma. São vários os jornalistas no local. Dentro das salas de aula, sobre as mesas, uma camada de pó como testemunha de que as bombas não distinguem vítimas.

Tekstilschik debaixo de fogo

Há dois dias, uma família encontrou a morte neste bairro de Donetsk. Quando chegamos ao local, o ruído das bombas é incessante. Os bombeiros estão dentro do edifício enquanto dezenas de moradores observam os trabalhos. Há uma família morta debaixo dos escombros, explica uma jovem. Quando vêem que há um jornalista no local, um grupo de idosas começa a gritar que aqui é Donetsk e não Kiev.

A mesma jovem aponta para o seu apartamento, no último andar, que não é mais do que escombros onde apenas resiste uma janela. De olhar perdido, enquanto o som das granadas de morteiro se sobrepõem ao ruído das gruas, diz que perdeu tudo o que tinha. "É a guerra".

Gorlovka, oito anos de inferno

A meio caminho entre Lugansk e Donetsk, um dos infernos de Donbass é Gorlovka. A dois quilómetros da linha da frente, os ataques são diários. Kolokolchik é o nome de um orfanato que está demasiado perto da linha da frente. Irina Kointsezeva é a directora do espaço e explica que teve de evacuar as crianças devido à "intensidade e proximidade" das bombas.

O recreio podia ser em qualquer outra parte do mundo mas neste não há risos nem brincadeiras. Apenas silêncio. Irina queixa-se da guerra sempre com um sorriso terno nos lábios. Não muito longe, o vice-presidente da Câmara Municipal, Pavel Kalinichenko, aceita responder a algumas perguntas faz questão de mostrar no seu gabinete vários mapas expostos na parede com pioneses em cada lugar atingido. Diz não compreender o governo de Kiev.

"Os nazis matavam outros povos. Eles matam o seu próprio povo", denuncia. De seguida, faz um convite para uma visita à escola primária onde morreram duas professoras nos arredores da cidade há pouco mais de um mês. É na sala onde um obus assassino de 152 milímetros matou as duas docentes que uma funcionária descreve o momento do impacto. Estava no local com as duas mulheres quando o pior aconteceu.

Vários trabalhadores tratam de reconstruir paredes e colocar novas janelas num esforço por devolver a normalidade a este estabelecimento escolar

"O ataque foi de manhã. Por sorte, não havia crianças naquele momento. Eu perdi a consciência e quando acordei disseram-me que elas não tinham sobrevivido", recorda. Questionada sobre quem atacou a escola, responde que foram "os ucranianos". No corredor que dá para as salas de aula, há duas fotografias das professoras e duas rosas numa jarra com água. É a homenagem possível da comunidade escolar.

No exterior, vários trabalhadores tratam de reconstruir paredes e colocar novas janelas num esforço por devolver a normalidade a este estabelecimento escolar. Mas enquanto carregam material de construção ouvem-se várias explosões. É assim durante meia hora. Junto a um parque infantil, um jovem estudante de Gorlovka aceita falar sobre a situação na cidade. Ilya tem 19 anos e desde os 12 que só sabe o que é viver em guerra. "Gostava que ao menos as crianças pudessem ter uma infância em paz", afirma.

Sobre as meninas e os meninos que morrem sob as bombas russas, considera que é "terrível" mas acaba por dizer que entende a entrada da Rússia na guerra "para acabar com os ataques da Ucrânia" contra civis em Donbass. Entre as razões que uns e outros encontram para justificar a sua posição, a guerra continua a encher cemitérios.

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