Gerência de riscos "não financeiros" ou privatização da guerra?

Na véspera dos ataques do 11 de setembro de 2001, o secretario de defesa do governo dos EUA, Donald Rumsfeld, pronunciou um discurso que visto duma perspetiva histórica poderia explicar muitas das chaves de acontecimentos posteriores. Nascera a batizada “Doutrina Rumsfeld”, verdadeira revolução militar consistente na subcontratação de empresas privadas de segurança para desenvolver operativos militares em qualquer das suas fases, mesmo no combate direto. Revolução concomitante com a urgente compulsão do capital para achar novos mercados, e que apostou desta vez na privatização da guerra. O negócio da guerra Esta atividade têm longa história. O exemplo mais recente no estado espanhol consistira na utilização de fundos reservados do ministério de interior para contratar sicários durante os governos do PSOE presididos por Felipe González. Sob o pretexto de combater o terrorismo, seriam encomendados para liquidar a disidência política. Desta volta, fazer a guerra em grande escala tornar-se-ia um lucrativo negócio de empreendimento privado, através do fornecimento de serviços de forças de segurança e de combate. Outra das vantagens da contratação de forças privadas consiste em evitar o rejeitamento social pelo envio de jovens recrutas a conflitos bélicos. Ocultar as baixas adoita ser a regra, encobrindo o verdadeiro custo humano da guerra. Além disto, o estado fica livre de responder por crimes de guerra enquanto são cometidos por estes contingentes privados. Constellis A norte-americana Academi, constituída nas sua origem como Blackwater USA e hoje inserida no megagrupo Constellis, destacou dentre outras contratistas privadas apôs o 11S. Fundada em 1997 por Erik Prince, um ex-militar conservador doador das campanhas políticas republicanas, as suas forças iriam gozar da imunidade legal própria dos militares, além de ficar livres da justiça militar e do controlo das organizações internacionais. Aliás, as suas ações ficavam à margem da cadeia hierárquica do comando militar. Beneficiou do desenvolvimento da “guerra contra o terrorismo”, estabelecida como uma nova “santa cruzada” contra os supostos responsáveis pelos intrigantes ataques terroristas do 11S. Desenvolvido o conceito de “força total” público-privada, alguns analistas cifram em mais de 1.000 milhões de dólares o faturado sem mediar concurso público. Trás a invasão ianque do Iraque, os mercenários privados chegaram a constituir o 50% das forças armadas norte-americanas despregadas na ocupação e o 90% dos benefícios de Blackwater provinham de contratos com o governo dos EUA. Concentrou numerosos contingentes humanos, incorporando antigos militares e ex-agentes da CIA, prontos para intervir em território federal ou entrar em combate em dúzias de países, e também instalações e armamento, que incluiriam a maior base militar privada do planeta, academias de instrução militar, aeronaves, veículos blindados e até os seus próprios serviços logísticos e de inteligência. Desde o início atuou com agressividade para lograr contratos, que segundo desvendaram congressistas como David Price ou jornalistas como Jeremy Scahill, incluíram encomendas da CIA para detenções extrajudiciárias, ameaças, operações de falsa bandeira ou intervenções encobertas que provocaríam conflitos premeditados de modo a obter novos contratos altamente lucrativos. As empresas globais da guerra Processos judiciais como o celebrado para esclarecer a morte de quatro soldados em Faluja destaparam o esbanjamento de milhões de dólares originado pela sucessão de subcontratas. Calcula-se que o 40% dos gastos da ocupação do Iraque correspondiam a empresas privadas. Porém, nem garantiam uma mínima segurança pessoal adequada as condições de risco das zonas de conflito, prevalecendo sempre a lógica da rendibilidade. Hoje existem outras empresas globais como a canadiana Garda World ou a britânica G4S Secure Solutions. Constellis foi adquirida em 2016 pela investidora Apollo Group, que participa desde 2020 numa sociedade de investimentos imobiliários com Abu Dhabi National Oil Company, uma das maiores petroleiras do mundo. Partilham projeto para instalar uma terminal de gás e petróleo no porto ucraniano de Odessa, para fornecer o mercado europeu deslocando a oferta russa de Gazprom. Riscos Até hoje, a pressão política do complexo militar-industrial devia cruzar barreiras institucionais, mas a recente sintonia entre esses grupos e as decisões dos departamentos de defesa põe em questão ditos estorvos. A medida em que estes grupos podem incidir nas decisões geoestratégicas dos governos é incerta, mas poderiam vencer os entraves das democracias liberais, instigando guerras no seu próprio interesse? Em tudo caso, o risco para a estabilidade geopolítica é assustador. O expansionismo imperialista associado ao interesse económico da indústria bélica fica reforçado pelo lobby dos combatentes de aluguer, encorajado pelos altos dividendos da guerra.