Opinión

Ciutadans

José Luis Sampedro, amigo como era de desvelar o incerto alicerce sobre o que assentam algumhas opinions arraigadas, costumava recorrer a umha pirueta verbal para refutar umha afirmaçom que tivo certo predicamento hai anos. Se o fim justifica os meios, dizia o respeitado professor de economia e membro do primeiro Senado da monarquia, que é o que justifica os fins?

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              José Luis Sampedro, amigo como era de desvelar o incerto alicerce sobre o que assentam algumhas opinions arraigadas, costumava recorrer a umha pirueta verbal para refutar umha afirmaçom que tivo certo predicamento hai anos. Se o fim justifica os meios, dizia o respeitado professor de economia e membro do primeiro Senado da monarquia, que é o que justifica os fins?

A cambalhota, que se dirigia a negar aquele perigoso argumento com que alguns pretendiam defender procedimentos infames, pode no entanto ser facilmente virada do contrário e suscitar outra nom menos interessante: se os meios justificam o fim, quê justifica os meios? Umha questom que hoje ganha actualidade ao agromarem no horizonte movimentos cidadáns que ponhem a ênfase precisamente aí, nos meios, nos procedimentos, deixando a definiçom dos fins (polo menos a sua definiçom expressa) para um momento situado nalgum ponto incerto do futuro.

Nom ponho em dúvida que, de umha perspectiva democrática, os meios som importantes. É bom estabelecer regras de jogo ajeitadas para agir na vida social e é desejável criar instituiçons que assentem sobre procedimentos democráticos porque a participaçom na tomada de decisons é em si mesma umha fonte de satisfaçom subjetiva dos cidadáns, umha componente da liberdade individual. Um exemplo que, embora politicamente incorrecto, pode ilustrar isto seria o referido às normas dos processos de selecçom para desenvolver umha dada funçom social à que aspiram persoas de um ou outro sexo. Introduzir normas precisas e imparciais (meios) pode ser preferível (falando em termos estritamente procedimentais) a aplicar cupos de representaçom em base a critérios de sexo para garantir a igualdade nos resultados (fins).

Ora bem, se nos limitamos a estabelecer regras do jogo mais ou menos adequadas e estáveis e nos atemos aos resultados, como predicava Robert Nozick e, em geral, os libertários de direitas, por vezes tildados de anarco-capitalistas, pode acontecer que, como no caso citado, surjam problemas porque nom sempre os resultados serám socialmente assumíveis. 

"Mas o silêncio e a indiferença, quando nom a oposiçom acirrada, com que estes movimentos e formaçons cidadás recebem fenómenos sociais da envergadura da mobilizaçom popular de Catalunya em defensa do direito a decidir o seu futuro como povo, deixa, no meu parecer, poucas dúvidas ao respeito".

Imaginemos umha economia de mercado que funciona aceitavelmente (um economista conservador limitaria-se a proclamar que funciona eficientemente), com normas adequadas e estáveis, mais gera grandes desigualdades. Que fazemos? Um elementar sentido da justiça aconselharia proceder -como mínimo- a umha redistribuiçom do ingresso mediante a fixaçom de impostos (coactivos, por definiçom) aos cidadáns ricos para financiar despesas em benestar social do conjunto e arquitectar um autêntico Estado-Providência. Diríamos que o fim, neste caso, justificaria sobradamente os meios.

Por outra parte, o conjunto social é, nom esqueçamos, um agregado multiforme e multicolor, pluridimensional, com aspiraçons díspares e interesses, polo menos subjectivos, muitas vezes encontrados. Se o sociológo inglês T. H. Marshall atribuía na sua clássica dissertaçom de 1949 três dimensons ao desenvolvimento da cidadania (a civil, a política e a sócio-económica), a nossa experiência mais próxima mostra que essas dimensons podem mui bem impulsionar a actuaçom dessa cidadania, e mesmo dum indivíduo, em sentidos diferentes e até contrários aos seus interesses objectivos.  O que explica paradoxos tam desconfortáveis como o feito de tanto o governo do Reino de Espanha como o da Junta de Galiza estarem em maos de um partido empenhado em desmantelar o Estado-Providência (a terceira extensom de Marshall) graças, em grande medida, á actuaçom politica (a segunda extensom) de sectores da cidadania a que objectivamente mais interessa a preservaçom desse Estado e que algumhas vezes, nom sempre, protesta contra as políticas desses mesmos governos na rua (segunda extensom).

Significa isso que devemos prescindir da participaçom cidadá na tomada de decisons que afectam ao conjunto e renunciar a meios reputadamente democráticos, a assembleia deliberativa ou os referendos por exemplo, para evitar resultados contrários ao nosso sentido da justiça e a oportunidade? Decididamente  nom. 

"Quem conhece os assuntos tratados, os argumentos defendidos e as decisons adoptadas em muitos dos últimos conclaves cidadáns do nosso país, dificilmente pode evitar o temor de que a justa indignaçom do nosso povo sirva mais umha vez de manjedoura para engordar o insaciável gado do patrom".

Devemos daquela renunciar na nossa actuaçom política a qualquer fim que nom coincida com a decisom, qualquer decisom, aprovada pola cidadania? Mesmo no caso de essa decisom negar direitos a persoas ou colectivos, limitar liberdades ou implicar umha agressom ao meio, à língua ou o património? Mesmo no caso de essa decisom aprovada apoiar agressons militares, autorizar a intromissom da igreja católica nas instituiçons democráticas, sustentar a monarquia, impedir a mulher decidir sobre o seu corpo...? Mesmo no caso de negar a um povo o direito a um meio democrático (o referendo) para decidir o seu futuro?
Honestamente, creio que nom. Como nom creio que existam colectivos sociais ou políticos sem outro propósito que veicular o plural sentir da cidadania.  A ausência de fins explícitos e a apropriaçom do papel de intérprete fiel desse sentir e defensor incorruptível “da igualdade de direitos dos cidadáns”, de única alternativa “à actual classe politica tradicional, obsessionada pola sua particular quota de poder politico” (em espanhol no original), por os seus procedimentos serem supostamente mais participativos que os doutros grupos, deve ser entendida no seu justo valor. O feito de existir hoje umha pluralidade de actores que reclamam para si esta singularidade rebaixa notavelmente, se nom anula por completo, a força da reclamaçom. Mas o silêncio e a indiferença, quando nom a oposiçom acirrada, com que estes movimentos e formaçons cidadás recebem fenómenos sociais da envergadura da mobilizaçom popular de Catalunya em defensa do direito a decidir por meios democráticos (referendo) o seu futuro como povo, deixa, no meu parecer, poucas dúvidas ao respeito.

Como estratégia eleitoral, inteligente ou torpe segundo o caso, pode funcionar, sempre que se conte com o suficiente apoio mediático (e o dos grandes mídia parece estar garantido) e um liderado individual atraente. Mas se o que queremos é pôr em prática formas de participaçom cidadá nom fraudulentas nem orientadas necessariamente à captaçom de votos, temos que afinar melhor os procedimentos para, na medida do possível, reduzir o risco da manipulaçom interessada. A democracia participativa exige debate sereno, princípios explícitos e compartilhados, definiçom do propósito do processo, garantias de as persoas que participam terem a informaçom necessária para emitir opinions fundamentadas a fim de evitar debates banais e infrutíferos. E tempo, muito tempo. Como o socialismo segundo Wilde. 

Demasiado óbvio? Oxalá! Mas quem conhece os assuntos tratados, os argumentos defendidos e as decisons adoptadas em muitos dos últimos conclaves cidadáns do nosso país, dificilmente pode evitar o temor de que a justa indignaçom do nosso povo sirva mais umha vez de manjedoura para engordar o insaciável gado do patrom.

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