Opinión

O triunfo da herestética na Arxentina

A herestética, tal como foi definida há sessenta anos pelo cientista político William Riker, é uma área de estudo da ciência política que consiste na análise da manipulação de preferências e alternativas numa competição eleitoral. É normalmente levada a cabo pelos partidos no poder e consiste basicamente em dividir a oposição, apoiando forças políticas emergentes que possam prejudicar os seus rivais eleitorais, ou em tentar fazer com que o próprio governo escolha não só quem o vai enfrentar, mas também como o vai fazer. Isto é quase sempre feito concentrando os ataques no rival a ser promovido, pois, estranhamente, esta estratégia funciona melhor do que o elogio nestes casos. Um exemplo de herestética falhada foi a tentativa bem-sucedida de Hillary Clinton de fazer de Donald Trump o seu oponente, para ter um rival que pudesse derrotar facilmente, uma vez que entendia que um candidato assim nunca poderia ganhar. Utilizou os meios de comunicação social para promover Trump e prestou-lhe especial atenção nos seus discursos. Ajudou a promover a sua candidatura, mas não conseguiu derrotá-lo. Em Espanha, foram realizadas experiências semelhantes com o Podemos e o Vox, incentivados pelo PP e pelo PSOE, respetivamente, tendo ambas sido relativamente bem sucedidas. Neste último caso, o medo do Vox, bem trabalhado pelos meios de comunicação oficiais, continua a ser um dos principais fatores que explicam a submissão dos partidos nacionalistas ao PSOE, que parecem esconder-se atrás dele para que este os defender dos perigos da chegada da extrema-direita.

O caso mais recente do falhanço deste tipo de estratégia pode ser encontrado nas últimas eleições argentinas. Massa e o peronismo promoveram indiretamente o aparecimento do outsider Milei, numa tentativa de dividir as forças da oposição de Macri e Bullrich, que é a quem o líder peronista realmente temia. Mas a estratégia revelou-se infrutífera e o líder ultraliberal, quase sem aparelho partidário, conseguiu inspirar a população argentina com as suas propostas radicais de mudança, triunfando mesmo nos bairros mais pobres da grande Buenos Aires. Além disso, os peronistas não tiveram em conta que o programa de Milei se insere num movimento global de reformulação dos paradigmas políticos, com êxitos evidentes noutras partes do mundo, da Holanda à Nova Zelândia. Confesso que não esperava o espetáculo das massas populares a festejar com fogo de artifício os recortes e as privatizações. Medidas que, sem dúvida, têm de ser tomadas para que a Argentina saia do buraco a que a conduziram as medidas intervencionistas dos governos dos últimos setenta anos, mas que eu não esperava que fossem recebidas com tanta festa. Para que este fenómeno ocorresse, deve ter havido uma mudança cultural em amplos segmentos da população argentina, porque o agora presidente Milei não escondeu as suas intenções. Na verdade, explicitou-as de todas as formas possíveis, e até de forma mais radical do que aquilo que vai realmente realizar.

A esquerda queixa-se sempre de que os poderosos não a deixam concretizar as suas intenções quando ganham, porque as moderam de forma irreconhecível. Pensem em Boric ou em Lenin Moreno sem sair da América Latina. O mesmo adoita acontecer com a direita e receio que o programa e a gente de Milei sejam pouco a pouco cooptados pelo velho macrismo e que se desvaneçam até se transformarem numa espécie de peronismo de direita. Esse seria o verdadeiro triunfo da herestética, que não importa o que as pessoas votam, porque as políticas serão as mesmas ou semelhantes.

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