O guarda-chuva do José

No início do decénio de 1980, meus pais iam alguns domingos ao meio-dia, com os filhos mais velhos, à Palheira, umha taberna situada em Velhe, perto de Ourense. Ali, munidos de bebida e de bons pratos de polvo ou de carne ao caldeiro, os fregueses ouviam a charanga do Cuco de Velhe, que, em nengum caso, deixava de entoar a peça mais irónica do seu repertório, O Paraugas do Xosé, cujo refrám "do José, do José" o público era convidado a ecoar coralmente, com irresistível gáudio. Se bem que essa cançom, através do castelhanismo suplente *paraugas ‘guarda-chuva’, mostrasse já no título o ferrete da intensa degradaçom lexical sofrida polo galego espontáneo, o cunho popular da toada também garantia que nela surgisse, como expressom genuína da fala corrente, o nome próprio do protagonista antecedido por artigo. Com efeito, para os nativos da comarca de Ourense, como para a maior parte dos falantes dos blocos central e oriental do galego, pertence à prática natural e quotidiana da língua um uso constante do artigo definido a preceder os antropónimos (a Joana, o Joám, o Souto, Forno do Tomás, Lar da Sabela), sem que tal traço morfossintático tenha qualquer conotaçom depreciativa ("O Pedro avisou a Raquel para que nom falasse com a Maria"). Em galego-português, esse uso especificado –habitual e nom marcado pejorativamente– dos nomes de pessoa nom só se regista hoje numha porçom substancial dos falantes da variedade galega, como também ocorre nos usos normais da língua nas variedades brasileira e, sobretodo, lusitana, na qual, de facto, o uso marcado é o do antropónimo sem artigo, que corresponde aos registos mais formais, sobretodo na escrita ("Cartão do Cidadão de Andreia Vaz Nunes"), e à designaçom de personagens e personalidades ("Obras de Camões"). Para os nativos de Ourense é prática natural um uso do artigo definido a preceder os antropónimos Em catalám Entre as línguas románicas, o uso especificado e nom marcado dos antropónimos também se verifica em catalám (la Glòria, el/en Lluís), mas em castelhano, como sabemos, é marginal e está conotado como pejorativo ou vulgar (a esse respeito, umha posiçom intermédia ocupa-a o alemám, no qual o uso dos antropónimos especificados, sem conotaçom depreciativa, é algo freqüente na linguagem coloquial: "Das hat mir die Monika gesagt", que equivale a "Isso dixo-mo a Monika"). Como curiosidade, refira-se que a ótima gramática da língua portuguesa editada pola Fundação Gulbenkian (2013) –a qual declara galego e português línguas diferentes, dobrando-se perante a ideologia castelhanista do oficialismo espanhol– falsamente afirma, quatro vezes (vol. I: 39, 1017-1025), que o português é a única língua románica a usar de forma nom marcada os antropónimos especificados, o que patenteia que só a posse de um Estado assegura às línguas reconhecimento pleno (nem comunidades autónomas nem o microestado andorrano som suficientes). No oficialismo Neste contexto, é triste e muito eloqüente a atitude do oficialismo lingüístico galego: apesar de o uso normal e nom marcado dos antropónimos especificados ser genuíno, estar largamente representado nos falares galegos contemporáneos, coincidir com o verificado no ámbito luso-brasileiro e contrastar com o verificado na língua que ameaça o nosso idioma, a RAG, equivalente à ILG, nom o fomenta, e a sua presença nos textos galegos orais e escritos orientados polo oficialismo, incluindo os da comunicaçom social, é demasiado reduzida (embora sempre tenha havido escritores proclives [em A Nosa Cinza, X. Alcalá escreve "Nela criouse o Manencho e fomos nacendo o Fuco, o Lourenzo, a Lucía, a Carmucha e máis eu"] e alguns sinais de progresso: se nas primeiras traduçons galegas do Harry Potter os antropónimos especificados brilhavam pola sua ausência, já a partir de O Cálice de Fogo [2005] os segmentos de tipo "o Frank" som freqüentes). Nom se nos deve ocultar que essa falta de promoçom por parte do oficialismo do uso em galego do artigo definido com os antropónimos, na linha de outras obscenas desistências (como a do uso dos nomes em -feira dos dias da semana), terá ficado a dever-se à circunstáncia de ele colidir com o castelhano, e colidir frontalmente, pois, sob a óptica, e na sensibilidade, da língua centro-peninsular, tal traço nom só é percebido como alheio, mas também, de facto, como arrepiante. Por isso, para regenerarmos o nosso idioma e para travarmos a sua dissoluçom no castelhano, dizermos com normalidade do José é importante: assim colocamos o galego em sintonia capacitante com as suas covariedades lusitana e brasileira e, frente ao ameaçador castelhano, erguemos a barreira de umha legitimidade alternativa.