Crónica desde o Brasil

A arte de governar entre quatro poderes

Dizem que, em uma democracia, o sistema de freios e contrapesos é o que garante o equilíbrio entre os três poderes, para que se controlem e priorizem as instituições. Como encaixar um órgão que se julga o moderador armado dos demais?
O Presidente Lula declarou a 12 de janeiro a jornalistas que “as Forças Armadas não são poder moderador, como pensam que são” (Foto: Ricardo Stuckert).
photo_camera O Presidente Lula declarou a 12 de janeiro a jornalistas que “as Forças Armadas não são poder moderador, como pensam que são”. (Foto: Ricardo Stuckert)

A pouco mais de uma semana da invasão e depredação das sedes dos três poderes da República, a profusão de fatos ainda não permite delinear como o Governo Lula vai se livrar dessa armadilha. Brevemente, podemos citar: 

—Ataques ao sistema de transmissão de energia elétrica, com a queda de ao menos cinco torres.

—Identificação de financiadores do transporte dos golpistas e retenção dos seus bens para reparação dos danos ao patrimônio público;

—Prisão do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres. A polícia encontrou em sua casa uma minuta de decreto prevendo a instituição de uma junta majoritariamente militar para “regularizar” o resultado eleitoral;

—Inclusão de Jair Bolsonaro no inquérito sobre a autoria dos atos golpistas.

Bolsonaro na Florida

O ex-presidente continua na Flórida com antigos membros do seu Governo. Talvez também com o senador eleito e ex-juiz Sérgio Moro, responsável pelo processo que levou à prisão irregular de Lula da Silva. Ele disse que foi a Orlando em férias.

O Governo sofre com o crescimento de discursos “pela liberdade de expressão”, comparações indevidas quanto ao gasto de cartões corporativos em mandatos passados de Lula (que incluía diversos órgãos) e no de Bolsonaro (individual), responsabilização por distorções tributárias determinadas pelo Governo anterior. Outra narrativa ascendente acusa o Ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes de ditar decisões individuais quando, na realidade, elas passam por colegiados e são provocadas por diferentes instâncias judiciárias.

A situação do Brasil é grave, as notícias não enganam. Mas a dimensão burlesca deste guião é francamente incontornável. 

Nesta semana, descobrimos que um dos planejadores do atentado a bomba na véspera do Natal estava em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica, e deixou um rastro com precisão satelital de toda a sua ação terrorista. O criador da tal bomba buscou “dinamite” no site da Shopee. Isso é real.

Os invasores presos foram ouvidos em audiências de custódia, em que um juiz avalia a legalidade da detenção para evitar abusos. Entre os golpistas, houve quem reclamasse mais espaço individual nas celas. Outros queriam água gelada, wi-fi e comida de qualidade. Um deles, espantosamente, expressou estar detido “contra a sua vontade”. Isso também é verdade. O juiz explicou-lhe que as prisões funcionam assim.

Mas é normal que um bolsonarista não saiba disso. Durante quatro anos plenos de incitação ao crime e ao ódio, suspeitas de improbidade e muitos atos postos sob sigilo de 100 anos, mais de 130 pedidos de impeachment presidencial foram ignorados pelo presidente do Congresso.

Na véspera das eleições, o comentário desagradável de um cidadão à deputada bolsonarista Carla Zambelli suscitou uma caricata perseguição a mão armada por ruas e comércios, fartamente registrada em vídeos na internet. Sua punição? Entregar as armas, não se fale mais nisso. 

Fake news

Quanto às fake news, foi um festival. Em igrejas evangélicas, a então ministra de Direitos Humanos afirmava ter descoberto denúncias escabrosas de abuso infantil, ocultadas pelo Governo Lula. Intimada a comprovar a acusação, disse que foi mal-entendido, elegeu-se senadora – não se fale mais nisso.

Então é assim, o Brasil corre o risco de tornar-se uma coleção de anedotas bizarras.

Porque há quem diga agora: não se fale mais nisso. Toda a corporação militar, até os moderados, unificou seu discurso: a destruição foi causada por “infiltrados”. Magoaram-se com as palavras duras do Presidente Lula – isso os generais dizem em off.

Existe uma realidade paralela nas academias militares do Brasil, ensinam aos cadetes que o golpe de 1964 foi uma revolução democrática de defesa contra o comunismo de gulags e paredões. Entretanto não há indícios –ainda– de mobilização da tropa oficial, somente desses personagens estranhos. 

Há delinquentes treinados, bandidos de monta e indústrias diversas, algumas figuras ridículas de rede social, mas há também um contingente desolador. Familiares de idosos vêm relatando o sequestro de seus entes queridos após um processo de radicalização intensificado nos acampamentos golpistas. O método lembra o das seitas, incluindo o rompimento de todos os vínculos afetivos.

O tecido social brasileiro está em farrapos em decorrência de um projeto organizado e complexo que está valendo a pena para poucos: neste país sem guerra convencional, os gastos com pessoal no Ministério da Defesa consumiu R$86 bilhões no último ano; na Educação, foram R$64 bilhões.

[Ívony Lessa é jornalista brasileira]

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