Crónica desde o Brasil

Brasil: Um desastre anunciado há 43 anos

A invasão, saque e depredação dos edifícios-sede dos três poderes da República Brasileira, empreendidos por cerca de 5 mil pessoas no último domingo, seriam uma tentativa de golpe de Estado ou uma catarse? Uma conspiração intestina ou internacional?
Extremistas invadem a Praça dos Três Poderes em 08/01/2023.
photo_camera Extremistas invadem a Praça dos Três Poderes em 8/1/2023.

É difícil entender como o Brasil chegou nesse ponto porque toda cronologia denota um argumento.

O antes e depois imediatos da tragédia são importantes: apesar das ameaças de golpe por membros civis e militares do antigo governo, o Presidente Lula da Silva tomou posse no dia 01 de janeiro de 2023. Apesar de toda a destruição dos atos de 8 de janeiro, a ordem foi reestabelecida no Distrito Federal (DF) com a prisão de 1.200 manifestantes, a dispersão dos acampamentos que pediam ação militar contra o governo, uma intervenção nacional direta na província que se mostrou incapaz de manter a ordem pública e o encontro de governadores das 27 unidades federativas do país com o Presidente, membros da Suprema Corte Federal e Parlamento, em raríssima demonstração de unidade contra a violência política. 

Podemos delinear uma cronologia mínima:

30/10/22 – Vitória de Lula sob acusação de fraude nas urnas por parte da mesma direita que obteve expressiva maioria legislativa.

31/10/22 – Registram-se 236 bloqueios em rodovias de 20 estados. 

01/11/22 – Acampamentos no entorno de quartéis pedem intervenção militar contra Lula. Sem financiamento conhecido, fornecem três refeições ao dia e entretenimento aos autodenominados “patriotas”.

24/12/22 – Encontrada bomba em caminhão-tanque com destino ao aeroporto de Brasília. O responsável, preso, admitiu ser uma estratégia para provocar Estado de Sítio. 

26/12/22 – O governador do DF nomeia Anderson Torres, ministro da Justiça de Bolsonaro, como Secretário de Segurança Pública distrital.

30/12/22 – Jair Bolsonaro, sem missão oficial, viaja aos EEUU em avião da Força Aérea Brasileira.

2/1/23 –José Múcio, ministro da Defesa de Lula, contraria o Ministro da Justiça Flávio Dino: “tenho familiares e amigos nos acampamentos, eles são inofensivos”.

3/1/23 – 1.204 servidores são exonerados por Lula. O governo anterior havia contratado mais de 8 mil militares para cargos civis.

4/1/23 – Redes sociais registram a expressão “festa da Selma” entre bolsonaristas de todo o país, em referência a evento que aconteceria no fim de semana.

7/1/23 – Agência Brasileira de Inteligência emite alertas a todas as forças de segurança. Anderson Torres viaja aos EEUU e seu suplente insiste que as manifestações previstas serão pacíficas.

8/1/23 – Cerca de 5 mil bolsonaristas são escoltados pela polícia do DF até a Praça dos Três Poderes, desprovida de policiamento especial.

A invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal envolve depredação, incêndio, destruição e furto de patrimônio, obras de arte, documentos e armas. Membros da polícia assistem, tiram selfies e riem. Anderson Torres é exonerado, tem pedido de prisão protocolado.

O governo federal determina intervenção na Segurança Pública do DF. Pela madrugada, o exército impede que a polícia cumpra mandado de dispersão no acampamento de Brasília, executado no dia seguinte.

Lula reuniu-se o domingo com ministros do Supremo depois de ataques antidemocráticos em Brasília. (Foto: Ricardo Stuckert)
Lula reuniu-se o domingo com ministros do Supremo depois de ataques antidemocráticos em Brasília. (Foto: Ricardo Stuckert)

A brutalidade terrorista contra os símbolos da nação brasileira unificou a opinião pública nacional e internacional, empoderando o atual governo a agir com todo o rigor da Lei contra seus opositores radicais – já há quem diga que houve uma omissão intencional com esse objetivo. Ainda assim, as invasões não são fato isolado porque demandaram muita organização, logística, dinheiro e convicção. Há novos bloqueios em rodovias, há grupos muito radicalizados e o amanhã é incerto. Esta situação nos demonstra o real significado dos “extremos” no espectro político: não se trata de uma abstração conceitual, eles se manifestam em atos.

Mas, afinal, qual é o argumento desta cronologia recente? Ele não convence.

Considerando os riscos imensuráveis dos atos de 8/1 para milhões de pessoas, é inevitável perguntar: quem pode ter sido tão temerário? Tão incompetente? Tão estúpido? Tão ousado? Neste contexto extremo, cada ator foi uma coisa ou outra, para a perplexidade da grande maioria dos brasileiros.

A Doutrina de Segurança Nacional da ditadura militar brasileira (1964-1985) visava os movimentos sociais, combatendo a subversão interna em detrimento do conceito de guerra convencional, entre Estados. Isso é fundamental para entender o que acontece hoje no Brasil: as fronteiras da pátria não são geográficas, elas são ideológicas e o inimigo é interno.

Gostaríamos de pensar que se trata apenas de um pensamento militar antigo, mas os autodenominados patriotas –terroristas– nos recordam sua atualidade. O coro entoado pela multidão durante a posse de Lula manifesta a mesma lembrança: “Sem anistia!”.

*Ivony Lessa é jornalista no Brasil

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