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Entrevista a Concha Rousia sobre o seu último poemário

Reproduzimos a seguir a entrevista da publicação digital Palavra Comum à poeta Concha Rousio arredor do seu último livro, Se os carvallos falasem (Através, 2016).

Concha Rousia
photo_camera Concha Rousia

- Que é para ti a poesia/literatura?

- Concebo a poesia como uma eira, um espaço no tempo, um espaço fora do próprio espaço físico, onde o Espírito de um determinado coletivo, um povo, respira. Poesia é esse lugar de sanação coletiva, é a escola livre de limitações do pensamento racional. A poesia acontece quando apagamos o ruído da racionalidade que tudo quer classificar em função das medidas do pensamento. A poesia se cultiva não na parte dirigida pela nossa dimensão cognitiva; se cultiva desde o nossa mente emocional. Já a Literatura é o templo, a fortaleça, com os Santinhos que vamos conseguindo consagrar para a supervivência; constitui a nossa resistência como seres culturais, que é o mesmo que dizer como seres humanos, pois a cultura é o que nos diferencia do resto de nossos irmãos animais. Sem poesia, sem criar, seríamos apenas consumidores de produtos artísticos. Não sempre arte e cultura caminham juntas. Arte é um produto, a obra de uma pessoa artista; mas cultura é aquele produto que o coletivo escolhe como representação artística de si, de todos. Muitos produtos artísticos fantásticos passam desapercebidos pelo coletivo, não conectando com o coletivo, passando sem serem cultura no povo do criador para depois talvez se converterem em elementos maravilhosos da cultura universal da Humanidade. Pensemos em Van Gogh, por exemplo, ou na nossa Rosalia…

Poesia é esse lugar de sanação coletiva, é a escola livre de limitações do pensamento racional

Não todas as pessoas escrevem poesia, mas todas podemos ler, todas podemos comunicar nessa dimensão. Por exemplo, um recital poético tem a poesia que se lê, tem a poesia do recitar, e tem a poesia do ouvir, do olhar, do comunicar estar naquela mesma longitude de onda, por assim dizer. Poesia transcende o poema, transcende o que cabe na palavra, poesia é mostrar o que já foi visto antes mas revela-se agora como se os olhos fossem sempre novos… É por isso que poesia se reinventa sempre, como um jeito de andar da nossa alma.

- Como levas a cabo, no teu caso, o processo de criação literária?

-A minha escrita é intuitiva, não é muito programada. Para mim escrever é ouvir mais do que um falar. Eu ponho o ouvido, quase sempre orientado para o interior, mas acho que é para dentro e para o exterior que coloco, simultaneamente, e trato de deixar sair pelos dedos aquilo que se move na minha mente emocional. Procuro escrever diariamente, como quem respira, isso quer dizer que procuro, sem que seja ativamente, aquele silêncio para ouvir as cousas que andem por aí perto dessa minha dimensão emocional. Como se descrevesse de jeito informal aquilo que vem mexer comigo na vida. Por vezes olhar o fogo faz com que essa imagem se misture com uma lembrança e nasçam aí emoções suscetíveis de serem captadas em fotografias poéticas, sejam palavras ou obras de criação de outra índole, tudo é poesia. Eu escrevo em qualquer lugar e forma, papel, computador, telemóvel, escrevo em qualquer superfície que suporte letras e esteja ao meu alcance… Por vezes acordo no meio da noite com um sentimento poético, uma imagem de um sonho e tenho que me erguer para escrevê-lo, se o não escrever não vou recordar, e mesmo se lembro as palavras não sou capaz de fazer nada poético com elas. O momento poético é emocional, ou então nos poríamos diante do papel e escreveríamos sempre que o desejássemos, e não acontece desse jeito.

-Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (plásticas, música, audiovisual, fotografia, etc.)? E entre Arte(s) e Vida?

- Pois não me tenho parado a pensar nisso. Acho que as pessoas estão mais acostumadas a ver arte pendurada nos muros como paisagem, estamos acostumados a viver com as pinturas, mas acho que a maior parte das pessoas vivem sem contacto com a poesia, muitas pessoas nunca têm estado num recital, nunca leram um livro de poemas… Eu gosto muito de misturar esses espaços; de fato alguns poemas meus já têm feito parte de uma exposição junto com as pinturas de Helena Badia, artista plástica natural de Pelotas, em Rio Grande do Sul, no Brasil. Pintura e poesia num diálogo singular. Pares feitos de uma pintura é um poema; ficou algo muito lindo; obras irmanadas. Gostaria de repetir essa experiência aqui na Galiza incluindo a leitura dos poemas à medida que as pessoas avançam pela sala o dia da inauguração, e talvez outros dias. Temos que aproximar mais a poesia das pessoas; educar a sensibilidade. Há pessoas que dedicam a energia que podiam dedicar à poesia a coisas como o futebol ou a religião, só porque apareceram em seu caminho e os cativou primeiro… Se o futebol foi capaz de seduzir o gosto das pessoas como não vai poder fazer isso a poesia recitada. Haveria que estudar isso bem. Depois temos a música, as canções que levam quase sempre uma boa poesia junto da música. Aí temos um bom relacionamento. Cabe tudo, vídeo-poemas. Fotografia incorporando poesia… o convívio das artes, pelas ruas e as salas da cidades, é a minha proposta.

- Trabalhas como psicoterapeuta. Existem, do teu ponto de vista, vínculos com a poesia? Nesse caso, como se combinam para ti essas duas vertentes?

-Para mim a poesia é uma forma de auto-terapia; se a psicoterapia é uma conversa entre a psicoterapeuta e o usuário da terapia, a poesia é minha conversa com o universo, com a vida… Nessa conversa se reorganiza o ser, a mente, tudo. Eu sou psicoterapeuta narrativa, entre outras aproximações teóricas. A minha atenção se dirige grandemente a possíveis falhos na narração que fazemos das nossas vidas; de quem somos; de quem somos realmente. Os humanos temos tendência a deixar fora das histórias que nos contamos sobre nós mesmos aqueles aspetos que contradizem a ideia principal do discurso dominante que temos sobre nós. Quer dizer que se eu me defino principalmente com ‘tímida’, todas as minhas intervenções no mundo social nas que não fui tímida, quase nem são registadas porque o discurso dominante sobre mim não lhes outorga nenhum protagonismo. Chegamos a esquecer tudo do que somos capazes, e continuamos narrando-nos sempre com as mesmas histórias limitantes, mas que confirmam a nossa identidade.. Isto é um pouco mais complexo do que isso, mas em essência é isso, e tem muito de criativo. Viver é um ato criativo, mas podemos cultivar mais conscientemente essa criatividade. Eu acho que o mundo moderno está perdendo essa faceta que as culturas tradicionais mantinham, com a música, a dança, a regueifa, ou o cantar do desafio… A vida não pode ser tão materialista, devemos alimentar o espírito, o nosso individual e o espírito do coletivo, aí a poesia é o pão…

-Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária hoje?

-Acho que se devem criar oportunidades de encontro entre a poesia e as pessoas, os programas de divulgação cultural que fomentam a criatividade devem ser desenvolvidos, levados a sério. Programas de rádio, televisão, espaços nas bibliotecas, nas livrarias, etc., que abram esse espaço, que ofereçam a oportunidade do encontro. Talvez nos centros escolares, tanto de primária quanto de secundária, poderiam fazer um esforço nas horas de literatura por aproximar os escritores e escritoras locais das e dos estudantes. Humanizar a criatividade, pôr rostos a arte. Oferecer modelos. Eu estaria disposta a ir uma vez por mês, por exemplo, a falar de poesia, a ler poesia, a compor poesia com os estudantes que o desejarem. O contacto com a poesia no livro e na pessoa da poeta.

Também acho que fomentando a reflexão, a mirada reflexiva interior e sobre o mundo, seria bom. Aprender a ver, a mirar com mimo, sem julgar. Acho que o que mais aprendemos na vida é a julgar. A arte, a estética da arte é mais acolhedora.

- Que perspetiva tens sobre a língua e cultura galegas e a sua vinculação com a Lusofonia? Que achas das relações existentes e para onde consideras que se devem/podem dirigir?

- Sobre a língua e a cultura galegas tenho sensação de fragilidade. O que me resulta incómodo, quase de dor física. Que uma cultura tão forte e sã como a nossa, e uma língua antiga, uma língua de poesia, se vejam ajoelhadas ante o castelhano, é para além de absurdo, uma tristeza. A nossa língua é grande, livre pelos continentes do mundo, e enfraquecida no seu lugar de nascença. Esta fragilidade é obra do esmagamento histórico, não é um acontecimento pelo passo do tempo, é fruto do resultado da violência a que fomos, e somos de forma mais ou menos perceptível, submetidos. Nem sabemos o quanto. Os vínculos com a Lusofonia nos darão a energia suficiente, nos darão o espaço para estender essas nossas frágeis (fragilizadas) asas e voar. Olha só, eu escrevo isto e sai publicado na Net; na Espanha talvez ninguém me leia, mas me lerão em Portugal, no Brasil, e daí eu tenho mais do que motivos para escrever.

A nossa Língua tem muito futuro, tem todo o futuro, mas pouca vida na própria terra em que nasceu

Considero que as Políticas públicas deviam ir encaminhadas a abrir novos caminhos, e alargar os caminhos existentes, pelos que a nossa literatura poder andar, em vez de dedicar-se a criar falsas estradinhas pela nossa terra adiante para acalmar as consciências e perpetuar o minifundismo literário. Temos muita terra em que plantar os nossos versos, afinal o nosso jeito galego de ser é sair ao mundo, navegar, ir… A nossa Língua tem muito futuro, tem todo o futuro, mas pouca vida na própria terra em que nasceu, se continuar sendo tratada como está sendo tratada. “A Minha Ortografia é uma Emigrante Retornada, como eu” é um verso meu no livro, a nossa ortografia deveria ser melhor tratada, não vem pedir nada que não lhe pertença.

- Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver? Fala-nos, mais em concreto, do teu novo livro, Se os Carvalhos falassem, publicado por Através…

- Quero que o meu próximo livro seja de prosa poética, ou de ‘ensaio poético’, ainda não tem título definitivo. Alguns dos textos que incluirá já tenho prontos, outros ainda estão sendo escritos; projeto para publicar no próximo ano. O seguinte projeto é um livro de textos relacionados com a vida num ginásio. Incluirá prosa poética, poesia, frases, contos… uma mistura de narrativas… e quem sabe uma canção… Noutro futuro quero escrever um segundo livro de Nântia, e ainda um terceiro… quero que seja uma trilogia, mas não tenho pressa. Também quero publicar em papel o meu primeiro romance As Sete Fontes, que foi publicado como e-book em 2005 pelo Editor Victor Domingos da Editora Arcos Online; queria também publicar outro romance meu, ganhador do Certame Literário Feminista do Condado em 2006, intitulado A Língua de Joana C. Acho que é tudo por hoje… E ainda queria pelo meio desses projetos todos que mencionei, escrever junto com poetas de outros países da Lusofonia, com poetas do Brasil, e publicar livros galego-brasileiros. E também queria aprender a pintar.

Se os Carvalhos Falassem é um livro que recolhe os poemas com os que me fez poeta. As raízes da minha poesia estão todas neste livro. Tem uma história: quando escrevi o meu primeiro romance, As Sete Fontes, eu fiquei muito feliz; tinha a sensação de ter-lhe dado sentido a muitas cousas. Então tentei publicá-lo; e foi tão difícil… Um livro tão galego como era esse meu romance e não parecia haver sítio para ele na Galiza. As Sete Fontes foi um filho negado; por dous motivos; o primeiro a grafia em que estava escrito, e a segunda porque fala da cultura tradicional, do nosso mundo indígena do que a nossa sociedade se quer esquecer. Quando descobri que não havia lugar para o meu romance na minha própria terra, e que tive que publicá-lo em Portugal, senti o negados que estamos culturalmente. Aí, nesse desespero nasceram os primeiros poemas que agora juntos fazem parte deste livro. O poema “Se os Carvalhos Falassem”, que dá título ao livro, é o primeiro poema dedicado ao meu pai; ele ensinou-me a ver o nosso mundo com olhos de druida. Este livro é uma homenagem à minha mais sacra herança cultural. Com cada livro publicado acho um bocadinho de paz.

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