Opinión

Desembarques

A eclosão dos podcast foi um dos fenómenos mais proveitosos do confinamento em pandemia. O Café Derby 21 dedicou um programa a Portugal, Alberto Mancebo, Portugal e a francesinha xentrificada. Sou professora de Língua Portuguesa no ensino secundário e devido à minha profissão, sempre me alegra ver que este tema ganha cada vez mais espaço. Não hesitei e dei ao play, mais ainda sabendo que participava o Alberto Mancebo, a quem tenho como divulgador do país vizinho.

A primeira questão colocada foi que iam desmontar certas lendas em volta da relação Galiza-Portugal. Lembrei-me imediatamente dos versos “Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos” de Bernardo Soares. A recordação veio porque o que encontrei no podcast foram, paradoxalmente, vários mitos à hora de desmistificar mitos.

Desembarcamos?

Encantos e desencantos

Uma das ideias que as pessoas mais me repetem é: “quando vou a Portugal, falo galego e respondem-me em espanhol”. Abre-se então uma sessão terapêutica onde há quem procure um reforço à sua língua.

Iniciativas como os aPorto, OPS, Ari(t)mar...têm trabalhado muito para melhorarem este relacionamento entre a Galiza e Portugal

Existe uma mixórdia de motivos extralinguísticos que explicam esta reação da outra parte. Muitas das conversas que se produzem entre galegos e portugueses são em lojas, hotéis ou restaurantes. Nós estamos de férias e quem nos ouve está ocupado, a trabalhar. Para nós é superinteressante contar coisas do galego-português e que uma vez houve um reino, mas esse interesse frequentemente não é correspondido. Estas interações são de teor comercial, onde do lado do vendedor há uma clara intenção de agradar “ao espanhol” que chega. “Mas a mim não me agrada essa resposta!”, estarão a pensar. E entendo o desagrado de se saber invisibilizado.

Não obstante, por vezes nem faz falta abrirmos a boca para que a interação comece em castelhano. Nós já mostramos a cara: pagar com notas de 50 euros, pedir café com gelo, falar aos gritos, chegar a um restaurante às 15 horas, pedir pratos para partilhar, etc.

O relato sobre um Portugal com um sentimento forte de irmandade é debatido no podcast.

Com certeza não existe uma correspondência nas paixões e assim o afirmou Salvador Sobral aquando a gala dos Ari(t)mar, por exemplo. Atrevo-me a dizer que não há versão errada nem verdadeira do país, infelizmente, por vezes não há sequer versão. Reparem em que o primeiro concurso público para a especialidade de Língua Portuguesa no ensino secundário foi em 2019. Havia quatro vagas.

Muitas pessoas da Galiza conhecem Portugal por causa das viagens

Na verdade, esta é uma ideia que não faz jus à realidade de um país. Portugal é mais do que um almoço em Valença ou uma escapadinha ao Porto. Necessitamos vivências mais duradouras para termos um maior conhecimento.

Iniciativas como os aPorto, OPS, Ari(t)mar...têm trabalhado muito para melhorarem este relacionamento.

“Falar galego da Costa da Morte ou galego normativo?”, “Eu entendia melhor os brasileiros”, “Em Lisboa têm um português muito fechado”

Aos motivos extralinguísticos temos que acrescentar os linguísticos, porque os há. Quero sublinhar que não há sotaques abertos nem fechados, todas as línguas têm variedades. Algumas podem ser mais ou menos transparentes. O hábito de ouvi-las, lê-las e praticá-las ajuda muito. É necessário esse contacto.

Ninguém em Portugal estuda nada sobre a Galiza, portanto, o conhecimento da nossa realidade é fraco. A isto há que acrescentar que a realidade cultural de Portugal é bastante uniforme e é complicado empatizar com universos culturais diferentes do próprio.

Devemos autoavaliar o nosso galego, cada vez mais castelhanizado na pronúncia, léxico e construções. Que ouve um português quando ouve galego?

Sermos galegofalantes é uma imensa vantagem, um ponto de partida miraculoso. Contudo, só penso em que teria acontecido se as pessoas que falam no programa tivessem estudado na ESO português. O ponto de vista seria o mesmo? Falaríamos de que os Ornatos Violeta são os Capitão Fausto lusos ou o marco cultural de referência seria outro?

Uma formação em português, que respeite as nossas vantagens como galegos e galegas, é uma carta náutica que sempre nos leva a bom cais. Desembarquemos de nós próprios e naveguemos.

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