Pôr o vício e a pobreza a render

O uso das receitas dos jogos de azar para financiar áreas importantes como a saúde, a educação ou a conservação do património é uma prática comum em vários Estados. Em Portugal, o monopólio do jogo está nas mãos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que dedica parte do seu volume de negócios ao trabalho de ação social. A Santa Casa é uma entidade privada de utilidade pública. É tutelada pelo Governo a quem compete definir orientações de gestão, fiscalizar a atividade e nomear os órgãos sociais. A Santa Casa complementa e, em muitos casos substitui, importantes funções sociais do Estado. Tem equipas por todo o país e uma vasta rede de equipamentos e infraestruturas que apoiam grupos sociais vulneráveis. É nos jogos sociais do Estado (Jogos Santa Casa) onde se recolhe a grande parte das receitas que financiam as ações sociais. Entre os seus jogos mais populares está a "raspadinha". É uma lotaria instantânea, barata e de fácil acesso. Um estudo recente do Conselho Económico Social concluiu o que há muito já se alertava: na base da procura deste jogo estão comportamentos aditivos e/ou situações de carência económica. Não será moralmente questionável que a ação de uma entidade de cariz social se financie com dinheiro de pessoas em tais situações de vulnerabilidade? Uma adição fácil As raspadinhas estão por todo o lado. Em muitas ruas com comércio encontram-se pontos de distribuição. O jogo não requer nenhum conhecimento específico: é só raspar um cartão e fica-se logo a saber se o bilhete comprado tem prémio. Este pode variar entre poucos euros até, muito raramente, valores milionários. Os prémios são entregues no momento. Quanto mais se joga, mais se quer jogar. O potencial das raspadinha para criar compulsão e vício de jogo é elevado. É comum ver pessoas a comprar vários bilhetes até sair algo, levando consigo a satisfação de ganhar pouco depois de ter gastado muito. Há quem gaste 500 euros em menos de 24 horas. Segundo um estudo publicado na revista The Lancet Psychiatry, em 2020, o gasto médio por pessoa em Portugal nestes jogos foi de 160 euros por ano, um valor mais de onze vezes superior aos 14 euros médios no Estado Espanhol. O consumo de raspadinhas é mais comum entre os mais pobres, três vezes mais frequente nas pessoas que ganham entre 400 e 664 euros por mês Estas lotarias instantâneas começaram nos Estados Unidos nos anos 70 e chegaram a Portugal em 1995. Desde então a oferta tem-se diversificado, tanto em relação ao preço (que pode variar entre um e dez euros) como aos temas a que se associa. Em 2021, por exemplo, o Ministério da Cultura lançou a raspadinha do património com o objetivo de gerar verbas para o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural. Apesar de ter sido recentemente suprimida devido à onda de críticas que gerou, conseguiu angariar 6 milhões de euros num ano, que estão a ser aplicados em obras de reabilitação patrimonial. Estima-se que 30% da população portuguesa compra raspadinhas, alimentando as vendas que não param de crescer desde 2010. São várias as vozes ligadas à psiquiatria que associam este crescimento ao aumento de casos de doença do jogo patológico. Alertam que a facilidade de acesso a este jogo comporta graves riscos de adição. As raspadinhas geram anualmente 1.500 milhões de lucro bruto. Parece absurdo que a Santa Casa, que serve de braço do Estado para lidar com casos de toxicodependência, financie parte da sua atividade com outro vício, o do jogo. O jogo da pobreza Os resultados do estudo do Conselho Económico Social dizem-nos que o consumo de raspadinhas é mais comum entre os mais pobres. É três vezes mais frequente nas pessoas que ganham entre 400 e 664 euros por mês em comparação com as que ganham mais de 1.500 por mês. O consumidor mais frequente tem mais de 50 anos, o ensino básico ou secundário e rendimentos abaixo do salário mínimo. O desespero de ter um rendimento extra que permita dar uma folga ao baixo salário é o que leva muitas pessoas a gastarem o pouco que têm neste jogo. Há uns anos, nos Correios de Braga vi uma mulher a usar parte do dinheiro da reforma que acabava de levantar para comprar raspadinhas ao mesmo funcionário que lhe entregara o dinheiro. Estavam ali mesmo à mão, expostas no balcão, coloridas e apetecíveis. Prometiam resolver em minutos os problemas económicos de uma vida. Com tudo o que sabemos o Estado não pode continuar a ignorar o problema. Enquanto não há coragem para acabar com este sistema perverso há ações mínimas que podem ser já aplicadas: acabar com a publicidade destes jogos; não entregar o prémio na hora; alertar quem joga para os riscos que incorre; e impor limites aos valores de jogo. Não podemos aceitar a imoralidade de haver serviços sociais financiados a partir de uma fatura paga por pessoas pobres e com problemas aditivos.