2023 foi um ano regular

O Brasil, como cada país, tem algumas tradições de fim de ano. Uma delas são as retrospectivas de notícias. Desta vez, falarão do retorno de Lula da Silva ao poder, da tentativa de golpe em janeiro e das incomuns catástrofes naturais que se deram por todo o território nacional: inundações, deslizamentos, sismos e, no sul, ciclones extratropicais. Mês a mês Em março, o estado do Rio Grande do Norte viu eclodir uma série de atentados criminosos comandados por facções sediadas em presídios. Enquanto as autoridades afirmam que os ataques se originaram do enfrentamento ao crime organizado, as facções alegam tratar-se de uma resposta às condições degradantes do sistema prisional –tudo me parece bastante plausível, até a página 2–. Em abril, houve alguns ataques reais e muitas ameaças contra creches. Na escola em que estuda minha filha, houve pais que defenderam a contratação de seguranças armados. Parecia algo ensaiado para gerar pânico, e gerou. Em maio, Deltan Dallagnol, procurador que acusou Lula da Silva em 2017, teve seu mandato de deputado cassado e, em junho, Jair Bolsonaro foi condenado à inelegibilidade por oito anos. Em agosto, o antigo advogado de Lula da Silva, Cristiano Zanin, tomou posse como juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) aos 48 anos. Em outubro, o governo federal lançou um programa de renegociação de dívidas de famílias inadimplentes –um público potencial de até 80 milhões de pessoas–. Em novembro, o atual ministro da Justiça Flávio Dino foi indicado pelo presidente para ocupar outra vaga no STF. A Nêmesis que cada um merece Jair Bolsonaro vem se tornando carta fora do baralho em âmbito nacional. As últimas tentativas de reviver o espírito animador de massas dos seus melhores dias fracassaram rotundamente, arruinando suas moedas de troca na armação do tabuleiro político para as eleições municipais de 2024. Tomou alguns decilitros de fôlego na posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, onde ficou lado a lado dos poucos chefes de Estado que emprestaram sua figura ao bizarro espetáculo. Também bastante esvaziado de público, diga-se de passagem. É fácil perceber que o tão inevitável "ajuste" e a "liberdade" vociferada pertencem a campos semânticos opostos: para alguns o ajuste, para outros, liberdade E não era para menos. Milei, que empossou a irmã como primeira dama embora namore uma comediante especializada em imitar Cristina Kirchner, enfatizou reiteradamente "o fim da noite populista". "Não há alternativa ao ajuste. Logicamente haverá impacto no nível de atividade, emprego, salários reais, na quantidade de pobres e indigentes. Haverá inflação, mas nada diferente do que aconteceu nos últimos 12 anos", discursou o presidente da Argentina como quem está sendo muito responsável. Descobri há poucos dias –manifestando meu desconhecimento em psicologia– que a Síndrome de Estocolmo nunca foi reconhecida como diagnóstico psiquiátrico. Para alguns pesquisadores, trata-se de um conceito construído para explicar o mecanismo de defesa dos reféns quando as autoridades falham em sua proteção. Linguisticamente, no entanto, é fácil perceber que o tão inevitável "ajuste" e a "liberdade" vociferada pertencem a campos semânticos opostos que, na prática, correspondem a campos sociais. Para alguns o ajuste, para outros, liberdade, e isso é sempre evidente como a ausência de roupas no rei: para aqueles que consentem em admitir. Outra notícia, também digna da nossa retrospectiva, é exemplo dessa pérola libertária. Em 1974, teve início a construção da fábrica de cloro-soda na cidade de Maceió, ampliando a mineração de sal-gema no nordeste brasileiro. O processo exploratório passou por diversas empresas, que nunca apresentaram o relatório anual de atividades com Estudo de Impacto Ambiental, um documento exigido por lei. Entre exploração predatória e fiscalização deficiente ao longo de décadas, em 29/11 a mina 18 entrou em colapso, acumulando um deslocamento vertical de mais de dois metros e desalojando cerca de 60 mil pessoas em uma área destruída de tres km². Também em 1974 nasceu outra tradição infalível dos finais de ano brasileiros: o espetáculo de Roberto Carlos às vésperas do Natal transmitido pela rede Globo de televisão. Neste ano, completaremos 49 anos de musicais que revelam, de certa maneira, como envelhecemos nacionalmente: menos originais porém mais insólitos, e crescentemente submetidos a participações efêmeras alavancadas pelos sponsors do momento. Aos amigos argentinos ainda aturdidos pelo que aconteceu e o que lhes espera, a única coisa a dizer é que, como no caso do Brasil, Milei também vai passar. É a única coisa a dizer, então dizemos, mas no íntimo todos sabemos que não é verdade.