Coronel António Delgado da Fonseca: "A revolução foi uma epopeia extraordinária"

Foi na guerra colonial que ganhou consciência de que as coisas tinham de mudar? Não, ao longo da minha vida militar fui descobrindo que tudo estava errado. Em Timor, aquilo era uma colonização. Num sítio onde estivemos durante 400 anos nem sequer conseguimos pôr a população a falar português. A minha companhia entreteve-se durante dois anos a formar miúdos a falar português e formámos mais de 800 garotos que passaram a falar e a escrever português. —Como é que entra para o MFA? Entro para o movimento numa comissão no leste de Angola, muito dura, com uma companhia, integrado num batalhão. Era uma zona de guerra, uma zona de entrada do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Quando me vinha embora, um comandante mandou-me ir buscar ao navio e entregou-me uma missão em Cabinda. Quando se começou a formar o MFA eu passei a ser o correio entre o movimento e os capitães que estavam em Cabinda. Regresso a Portugal em janeiro de 1973 e entrei imediatamente em contacto com os camaradas que estavam no Porto a organizar o golpe. Passei a integrar o núcleo do norte do MFA. Estive presente na reunião de preparação do golpe, decidido em Cascais. —Entretanto, dá-se o golpe falhado de 16 de março. Sim, os oficiais que estavam em Lamego a dar instrução no curso de operações especiais foram ter com o comandante e exigiam-lhe que tomasse uma posição. Acabaram deslocados para outras unidades e o comando precisava de alguém que continuasse o curso e foram-me buscar. —Mal eles sabiam… Disseram-me para não confiar no comandante e eu não conhecia praticamente os oficiais. Conhecia os sargentos e dominava a unidade. De forma que fui logo nomeado diretor da Instrução de Comando e de Operações Especiais. Uns dias antes do 25 de Abril, a companhia de comandos recebeu ordem para ir de férias. Mas antes disso tinham de receber vacinas. E eu conversei com o médico para atrasar a vacinação. De forma que no dia 24, a companhia ainda lá estava à espera das vacinas. Mas, nesse dia, às oito da manhã, aparece o general inspetor do exército para verificar a unidade. Passou a manhã toda comigo a inspecionar a instrução. À hora de almoço, ia a entrar com ele na messe de oficiais, que fica no centro de Lamego, e aparece uma pessoa à civil que me entrega um envelope castanho. Era a ordem das operações para o golpe. Disse que ia lavar as mãos e fui à casa de banho. Li aquilo à pressa e memorizei. No fim da refeição, o comandante da unidade disse-me que devia acompanhar o general às caves do vinho Raposeira. E tive de o acompanhar até às cinco da tarde. Entretanto, eu tinha dado uma instrução, através do meu condutor, para que todos os instrutores, oficiais e sargentos se reunissem às nove da noite no Quartel de Penude, onde estava o Curso de Operações Especiais. Às 9 e meia, disse-lhes o que se passava. Esperámos pela primeira senha. No fim da primeira senha, mandei formar o Curso de Operações Especiais e o curso formou como era tradicional. Mandei-os municiar, carregar os carregadores, receberam granadas de mão, o equipamento e rações de combate. À segunda senha [Grândola, Vila Morena], eu mandei cortar o cabo axial dos telefones do Quartel e controlámos a unidade. Quando já estava tudo preparado, com o pessoal formado nas viaturas, prontos para arrancar, fui bater à porta do comandante que dormia descansadamente, assim como o general, e disse-lhe que tinha de compreender mas teria de ficar neutralizado até a operação ter sucesso. Ele tremeu durante um bom tempo. —E ninguém resistiu? Não, pelo contrário, havia muita gente que queria ir connosco…. (risos) mas não podiam porque tiveram de ficar com missões em Lamego, nomeadamente a controlar as comunicações e controlar a segurança da unidade. E assim arranquei com a companhia de comandos reforçada com o pelotão de armas pesadas, com munições para cinco dias de combate. "Foi um pelotão comandado pelo Capitão Carneiro obrigar a companhia telefónica a restabelecer as ligações" —Como foi a viagem até ao Porto? Eu tinha a instrução de evitar confrontos com outras unidades. Como não tínhamos ideia do que se passava em Penafiel, fomos por Entre os Rios sem comunicações. Os rádios não funcionavam. No caminho, consegui telefonar para a unidade de Lamego a partir de um convento de freiras. Eles também não sabiam de nada. Cheguei ao Porto às seis e meia. A minha missão era neutralizar de imediato as instalações da PIDE. Só que não havia comunicações. Fui para o centro de instrução e atravessei a Baixa do Porto à frente da GNR [polícia semelhante à Guardia Civil]. A Legião Portuguesa tinha sabotado as antenas de rádio e televisão. Os engenheiros da companhia de telefones cortaram as ligações. Ninguém comunicava com ninguém. Às tantas, chateei-me e disse ao comandante da unidade: "Comandante, isto não pode continuar assim. Vamos tomar posições". De forma que mandei o pessoal da companhia ocupar a televisão e as rádios. Foi um pelotão comandado pelo Capitão Carneiro obrigar a companhia telefónica a restabelecer as ligações. Detiveram um engenheiro e obrigaram-no a pôr aquilo a funcionar. Entretanto, as antenas começaram a funcionar, as rádios e a televisão. No jornal Comércio do Porto, havia um cartaz na parede a dizer que havia uma revolta militar e as pessoas começaram a juntar-se. O comandante da polícia mandou carregar sobre a multidão apesar de ter ordem de não interferir nas operações. Os nossos militares que estavam a sair da companhia telefónica foram atrás deles [polícia] e correram com eles. Por isso é que durante dois meses não houve polícia no Porto. De súbito, a Baixa do Porto ficou a abarrotar de gente a gritar "Viva o MFA". Começou ali a revolução. —Vocês tinham receio de que pudesse haver alguma intervenção por parte de Espanha, a partir da Galiza? Óbvio. O acordo que havia entre Salazar e Franco implicava a intervenção no outro país se qualquer um deles fosse atacado. Por isso mesmo fizemos, por exemplo, um batalhão para controlar as fronteiras em Vilar Formoso. —E a fronteira com a Galiza? No Norte não tivemos a possibilidade de o fazer porque não conseguimos mobilizar Braga. E o segundo comandante da região militar do Porto, refugiou-se nos apartamentos na cobertura do edifício e ninguém sabia daquilo. Escondeu-se durante a noite dentro de um armário e ligou para Braga a tentar mobilizar a unidade e tentou que se chamasse os espanhóis. —Já depois da tomada do poder, como foi o seu percurso? Não regressei à minha unidade. Fiquei no quartel-general, naturalmente, a comandar a Polícia Militar. De forma que, imediatamente, começou aquilo a que eu chamo o interregno revolucionário. Tive que, com outros camaradas, resolver os milhões de problemas que imediatamente surgiram por todo o lado. A verdadeira revolução aconteceu entre os dias 26 de abril [de 1974] e o dia 25 de novembro [de 1975] em que houve uma liberdade completa assegurada pelo MFA. O movimento era fundamentalmente formado pelos oficiais intermédios e acompanhou este grande movimento social que ia destruindo o antigo para começar a criar o novo. Não havia partidos livres, nem sindicatos livres. Depois começou a necessidade de preparar os cidadãos, que não estavam habituados a votar, nem sabiam o que era isso, para as eleições. A gente tinha prometido que haveria eleições para a Assembleia Constituinte. Então, resolvemos criar a Dinamização Cultural da qual fui coordenador no norte do país. E foi uma epopeia espantosa. Com liberdade completa, sem polícia, as populações comportava-se dignamente e começou a lutar pelos seus direitos. Nas sessões que realizamos toda a gente falava. Esse era o aspeto mais curioso desta revolução em que não havia qualquer repressão. Na aldeia de Penafiel, num dia de muita chuva, em que não havia sítio nenhum para a gente conversar na aldeia, puseram as vacas todas na rua e discursei numa manjedoura. Até as velhinhas tomaram a palavra para dizer o que sentiam e o que queriam! —Depois veio o terrorismo da extrema-direita. A partir do Verão Quente de 1975, os partidos começaram na sua verdadeira função de conquista do poder. [António de] Spínola fez uma tentativa de golpe a 11 de março e depois fugiu para Espanha. A partir daí, a extrema-direita manifestou-se, sobretudo, no MDLP com dinheiro de gente rica e com ligações a Espanha. A certa altura conseguimos infiltrar o MDLP e até tivemos um elemento presente nalgumas reuniões na Galiza e em Madrid. —Sente que foi o período mais bonito da sua vida? O mais bonito e mais trabalhoso. Durante muito tempo posso dizer que trabalhei 18 horas por dia [risos]. —E hoje? Os índices sociais melhoraram brutalmente e as conquistas da revolução continuam a estar nas leis, mas algumas delas não são exercidas. Ninguém percebe muito bem como é que é o direito de expressão não é efetivado. Os meios são propriedade de meia dúzia. O cidadão ganhou direitos de representação com a democracia através das eleições mas sem capacidade de exprimir nada. Antes, havia mais participação cívica, mais participação na vida da sociedade.