Opinión

Democracia, distopia e protecção de dados

Há uma anedota —popularizada pela jornalista Marta Peirano neste monólogo imprescindível—que se está a converter num clássico para ilustrar os perigos da recompilação de dados sensíveis de carácter pessoal, com independência de que as intenções originais fossem boas ou más. Quando, em Maio de 1940, os nazis ocuparam a Holanda, encontraram uma ajuda imprevista para a identificação e extermínio de judeus: o governo do país tinha elaborado anos antes um censo de religiões, para distribuir de maneira justa os fundos públicos que correspondiam a cada confissão. No verão de 1940, a ideia era aplaudida pelos vitimários, e chorada pelas vítimas: apenas 10% dos judeus holandeses sobreviveu a 2ª Guerra Mundial.

No passado dia 21 de Novembro, o Senado espanhol dava a sua aprovação definitiva à nova Lei Orgánica de Protecção de Dados, envolta no seu tramo final pela polémica que levantou a introdução duma Disposiçom Final que reforma a lei eleitoral, habilitando os partidos políticos para pesquisarem a Internet e as redes sociais na procura de dados relativos às opiniões políticas dos cidadãos, e que liberta o marketing eleitoral de algumas das restrições que se aplicam à publicidade comercial. Na prática, isto significa que os partidos poderão elaborar perfis e utilizar listagens de cidadãos e cidadãs identificadas que —por exemplo— sejam contrárias à monarquia, sob a escusa de assim poder desenhar melhor a sua intervenção eleitoral. O escândalo e o desassossego entre os expertos está bem justificado, e mais quando a nova LOPD tinha por objectivo principal adaptar a legislação espanhola ao novo Regulamento Europeu de Protecção de Dados (RGPD), que foi elaborado para proteger a cidadania (e não para dar novas ferramentas eleitorais aos partidos), e que no seu Artigo 9 tenta proteger especial e especificamente o tratamento de dados relativos às opiniões políticas.

Como pano de fundo da polémica estão, evidentemente, a penetração cada vez maior das redes sociais e os dispositivos electrónicos identificáveis (como telemóveis) na vida das pessoas, a sua utilização inconsciente e indiscriminada para a expressão (e o conseguinte registo por parte dos comerciantes de dados) das opiniões, desejos, filias e fobias mais íntimas, e o exemplo prático do caso “Cambridge Analytica”: a utilização por parte da campanha de Donald Trump das informações pessoais obtidas de milhões de perfis de Facebook, que uma vez analisados e processados por potentes máquinas e complexos algoritmos, serviram para sintetizar quais eram as imagens, as promessas e os sloganes que melhor conseguiriam mobilizar o voto de cada usuário particular. De facto, a utilização deste tipo de perfis em marketing eleitoral avançado e personalizado é uma das fontes de preocupação mais evidentes: do ponto de vista democrático, porque remata por desvirtuar completamente a contenda eleitoral, dando às candidaturas e partidos que podam pagá-la uma arma capaz de deixar os seus rivais na idade de pedra publicitária; do ponto de vista do cidadão de a pê, porque abre as portas para que os partidos nos estejam bombardeando em cada campanha com spam eleitoral via e-mail, sms, whatsapp ou o que for. A alarma ante este tipo de práticas é tão notória que unicamente as forças parlamentares espanholas parecem não estar ao tanto: no passado mês de Outubro, ao tempo que a polémica Disposição Final da LOPD era aprovada por consenso na Câmara Baixa, o Parlamento Europeu fazia um chamamento explícito para proibir a elaboração de “perfis para fins políticos e eleitorais, com base em comportamentos online, que possam revelar preferências políticas”.

A nova lei abre as portas para que os partidos nos estejam bombardeando em cada campanha com spam eleitoral via e-mail, sms, whatsapp ou o que for

 

E, porém, o problema principal não é tanto que se faça publicidade invasiva com base nesses perfis ideológicos da cidadania, quanto a própria possibilidade de elaborá-los impunemente. Falando claro: a nova lei permitirá que Falange poda conseguir legalmente uma listagem de pessoas identificadas (com nomes, domicílios, números de telefone, e-mail, contas em redes sociais…) que apoiam a declaração unilateral da independência de Catalunha. Ou que o cacique de turno conheça ao detalhe a posição política desta ou aquela aspirante a um posto de trabalho na Diputação. A técnica há tempo que permite isto e muito mais (Google sabe o que votas, mas também o tipo de pornografia do que gostas…. e isto último não lho revelarias a um entrevistador do CIS), mas, com o RGPD, quem se atrevesse a fazê-lo expunha-se a uma sanção de até 20 milhões de euros e à suspensão da sua actividade. A nova LOPD abre as portas a que a poderosa indústria do Big Data entre legalmente no mercado eleitoral espanhol, e ainda que a Agência Espanhola de Protecção de Dados interveio na polémica clarificando que não pretende permitir que os partidos elaborem perfis ideológicos da cidadania, quem autoriza ou desautoriza este tipo de práticas não são os titulares de imprensa, mas o texto das leis; e o que vem de aprovar-se diz, literalmente, que “a recompilação de dados pessoais relativos às opiniões políticas das pessoas que levem a cabo os partidos políticos no marco das suas actividades eleitorais, encontrará-se amparada no interesse público [que é uma das bases sobre as que o RGPD declara lícito um tratamento de dados] unicamente quando se ofereçam garantias adequadas [sem especificar o que isto significa].

Google sabe o que votas, mas também o tipo de pornografia do que gostas…. e isto último não lho revelarias a um entrevistador do CIS

 

Como ilustra o exemplo histórico com o que começávamos, as restrições, as garantias e a boa vontade com a que se pretenda fazer uma determinada acção não nos diz nada a respeito das consequências que esta possa ter no meio e longo prazo. Se algo repetimos até a saciedade quem nos dedicamos à privacidade digital é que a persistência dos dados introduzidos num dispositivo informático e enviados através da Internet é virtualmente infinita. O funcionamento normal da rede faz com que os dados digitais sejam copiados tantas vezes e em tantos dispositivos, que devemos dar por feito que deixarão de estar baixo o nosso controlo, e que ficarão disponíveis para sempre. Esses dados pessoais relativos a opiniões políticas que a LOPD permite aos partidos recompilar, vão ser tratados por empresas de marketing e demoscopia nas que trabalham pessoas, enviados aos clientes por e-mail, compartidos entre a equipa de campanha por whatsapp, e guardados nas diferentes sedes dum partido que quando tem um problema informático envia o computador sem cifrar ao serviço técnico, e quando se lhe estraga, ao Ponto Limpo. Que pode sair mal? Se 200 milhões de credenciais de Yahoo estão acessíveis na internet, o estranho será que mais cedo que tarde não esteja disponível na rede um buscador de partidários ou detractores de qualquer posição política pela que historicamente a gente matou e morreu.

Se algo repetimos até a saciedade quem nos dedicamos à privacidade digital é que a persistência dos dados introduzidos num dispositivo informático e enviados através da Internet é virtualmente infinita

 

Mas não descarreguemos toda a responsabilidade nos políticos, que a fim de contas não fazem mais do que legalizar uma prática que a Cambridge Analytica demonstrou que já se está a fazer, e que só é possível graças ao uso que nós próprios damos às ferramentas digitais e ao mundo que estas constroem. Somos nós, a mergulhar-nos na rede empresarial e comercial que hoje é a Internet sem noções básicas do seu funcionamento e das ferramentas e técnicas que existem para proteger a nossa privacidade, com atitudes que consideraríamos inaceitáveis no mundo analógico mas cuja repercussão na esfera pública e privada não somos capazes de prever, quem estamos a tornar-nos inermes e vulneráveis ante um Leviathan com ligação 4G. A cada passo que damos —movidos pela adopção acrítica das novas tecnologias e pela confiança ingénua em que os tempos de paz que vive a nossa geração são regra, e não excepção— as distopias totalitárias enxergam-se mais próximas e reais. Mas o controlo absoluto sobre o que estão a assentar as tiranias do século XXI não é imposto com a violência policial que previa Orwell, mas com a seducção tecnológica e liberal que temia Huxley. Nunca um poder teve tanta quantidade de informação, e de tanta qualidade; nunca a cidadania ignorou duma maneira tão irresponsável que se “a informação é poder”, quando se dá informação, perde-se poder.

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