Uma estrela na fronte

É provável que a ilha de Joya tenha aparecido antes em algum desses atlas de ilhas perdidas e esquecidas, mas não reparáramos nela até que Kiran Millwood a colocou perante os nossos olhos. Quem sim tinha reparado, como sempre, foram os traficantes de escravos e os exploradores de recursos naturais. Mas isso foi em tempos outros. No tempo da história que se nos narra, Joya é uma ilha repartida em três mundos: a impudica riqueza do governador Adori, a miserenta vida do resto da população e os Territórios Esquecidos, espaços outrora acessíveis e agora proibidos. Na aldeia de Gromera, isolada duplamente por ordem do governador, vive a protagonista. Isabel é filha de um cartógrafo, ofício inútil lá onde as viagens não estão permitidas. Leva como pode a morte da mãe e do gémeo Gabo em quanto aguarda o começo da escola. Entretanto, aprende a ler e escrever mapas com o pai, e passa o tempo que pode com a melhor amiga, Lupe, filha do governador. Não se dá um brutal assassinato que estraga a calma do lugar. Dá-se um brutal assassinato que confirma a violência e repressão à que é submetida a povoação de Gromera. Isabel culpa a amiga Lupe, Lupe decide que deve resolver o crime sozinha, saltando o valado para se internar no desconhecido, e todo acaba (começa) numa expedição aos Territórios Esquecidos que resgate a filha do governador. Isabel incorpora-se ao grupo como cartógrafo aprendiz, suplantando a identidade do irmão Gabo, que já se sabe: as raparigas só podem andar o mundo trajadas em homens. Kiran Millwood combina elementos dos géneros fantástico e de aventuras fazendo que a leitura nos enganche sem nos atrapalhar. Criaturas desconhecidas, agoiros voadores, monstros noturnos, geografias perigosas, amizades inesperadas, velhas lendas de deusas e demos e, sempre, a violência do governador, são cartografadas para nós por Isabel. Quiçás seja ela a escolhida, a rapariga elegida para salvar Joya da destruição. Aquela de quem falam as lendas. O que mais nos fez gozar na leitura da Rapaza de tinta e estrelas foi a ambientação da história e a metáfora política que traz com ela. Entre corvos, lobos demoníacos, pântanos, aldeias massacradas e cascatas assomam os grilhões de escravitude, as condeias arbitrárias e as prisões torturantes. E como sempre, também, em qualquer lugar, pessoas que se rebelam contra a injustiça. Como a rapariga com a fronte tisnada de estrelas. No bico, a arte de contar. A rapaza de tinta e estrelas Kiran Millwood Hargrave / Tradução: Moisés Barcia / Sushi Books / 2019