Que põe o teu DNI?

É a frase com a que me têm pretendido calar a boca quando me declaro galega e não espanhola: que põe o teu DNI? Como se aquilo que lá puseram as autoridades marcasse o que eu sinto ou o que opino. Que põe o teu DNI? Que põe o teu DNI! Sempre me pareceu uma maneira burda de querer fechar um debate ou uma discussão, justo no momento de entrar na questão íntima daquilo que uma sente, daquilo com que uma se reconhece. Identidade: Nee Barros Fernández / Galaxia / 2021 / 88 páxs / 10,75 euros Em Identidade, de Nee Barros, é a Zé a quem lhe arremessam, de uma maneira ou de outra, direta ou indiretamente, essa frase, como arma que impede, às lançadoras, parar a pensar. O teu DNI indica seres María, não Zé. Esquece pretender viver como um Zé e cumpre com o documento, que para algo é nacional e de identidade. Identidade é uma obra de teatro que, em cinco atos, debulha a luita de Zé para poder ser Zé. Zé tem 15 anos e não quer ser Maria. Em realidade sempre foi Zé, mas é assim como é visto polo mundo em que vive, como uma María algo machola e desorientada. As diferentes cenas colocam, por uma parte, os espaços de vida em que Zé interage: a escola, a casa, o acampamento, as atividades extra-escolares o gabinete de psicologia; por outra, o processo de toma de consciência da sua própria situação: as aulas de dança, o vestido da comunhão, o acampamento, a imitação do irmão homem… Isto em relação ao protagonista. Porque, com o resto de personagens assistimos ao processo de (não)aceitação da diferença. Como se de um Ensaio sobre a cegueira se tratasse, o dramaturgo decide que as personagens levem uma venda nos olhos, preta, que remarca essa incapacidade de ler os sinais que Zé envia. Há quem mantém a venda o tempo todo, há quem a tira, happy end, no final da estória. Nesse sentido, achamos que o texto está escrito para as cegas que no mundo somos. Para que aprendamos a olhar, a ler, a perceber o que sentem aquelas a quem o DNI lhes marca uma identidade que não é a sua. Ouh, sim, literatura pedagógica! Boa falta nos faz! Ao tempo, insiste em rachar com tópicos sobre as identidades trans. Que não, que não é querer azul ou rosa no quarto, que não, que não é uma arroutada adolescente, que não, que não é algo que sande o tempo. Para cada tópico, uma cena, umas personagens que ajudam a desmentir. E sempre, espelhos ocultos a deformar os corpos. Encontramos alguma cousinha na construção da trama que nos range, mas depois sabemos que o autor escreveu a obra com 14 anos e regalamos olhos: em verdade punha tal idade o teu DNI?