Não há maneira única de ser

E não sabia por que havia de ser incompatível com o trabalho formiguil. Ri a cachão quando no filme Los lunes al sol o Bardén-cuidador improvisado faz a sua análise proletária da formiga especuladora. E houve de ler o Frederick, de Leo Lioni, para encontrar uma defesa maravilhosa da inutilidade útil da poesia, da arte. A formiga destemida / María Reimóndez / Ilustrações de Iván Sende / Xerais / 2020 / 96 páginas / 11,70 euros Porém, as formigas. Que culpa elas terão de que as tenhamos utilizado para as nossas fábulas capitalistas e desmobilizadoras. E são assim as formigas? São realmente rebanho cego? Se atendemos à formiga destemida de María Reimóndez, não. O Bardém-cuidador improvisado indica que nos devemos perguntar por que algumas nascemos formigas e outras carricantas. A resposta de Reimóndez anula a questão: ao sermos contamos com a possibilidade de construirmo-nos. Sempre. Não existe a condena a sermos de uma única maneira. Assim, no seu relato, a formiga destemida sai do carreiro e não vai em sentido contrário nem em sentido diferente, mas naquele que a leva o talento mais importante: a curiosidade. A formiga destemida quer saber. Todo. E todo o pergunta. A formiga destemida quer provar. Todo. E todo o prova. A formiga destemida não quer incomodar. E aprende, também, a calar. A formiga destemida conhece a carricanta e admira como ela faz música. A carricanta explica, mas a formiga não tem asas para riscar. Isso não a rende. Pesquisa, prova, inventa. Consegue fazer um timbal. A formiga conhece o cavalinho do demo e descobre a possibilidade de voar. Conhece os peixes e imagina-se a nadar na água. A formiga destemida dá com animais e nas suas conversas com eles, sem medo nunca a ficar de parva, vai conhecendo o mundo. Até chegar aos humanos: esses seres que envenenam o rio, desfazem as ribeiras, ardem os montes. Falam-lhe deles o martinho peixeiro, o rato, o raposo. Decide que quer conhecê-los. Saber como são. Destemida dos monstros. Porque todas as humanas são monstruosas. Ou não? Como reviravolta de uma fábula que é, A formiga destemida quer deleitar e ensinar. Mas não precisa de conselhos morais finais, porque é do caminho que a formiga anda que aprendemos: é bom sair do carreiro que nos marcam, é bom querer saber, é bom achegar-se a seres novos e diferentes, é bom escuitá-los. Porque não há uma única maneira de sermos formigas. Mesmo pessoas.