Irás e não voltarás

H á espaços com memória. E espaços com memória difícil. Difícil porque foi deturpada e inventada: roubas umas terras cá, umas esculturas românicas lá, levas o piano desse paço, a livraria daquele outro, a pia da igreja de não-sei-onde, e mesmo encarregas ao canteiro um escudo novo que cheire a velho, que para algo és ditadorzito e podes impor o que seja via medo e armas e boe. Nasce assim Meirás, com passado intelectual e presente autárquico. Perante as memórias difíceis é básico fabular memórias futuras, recriar passados que nos deem esperanças e vontades de luita. Isso faz Eva Mejuto com a sua ladroa de Meirás. Nesta narrativa, pensada para público adolescente, a autora leva-nos à década de 40 e apresenta-nos a Mariña, uma rapariga a cuja família lhe foi arrebatada a casa para incrementar a extensão do paço de Meirás, local de férias do ditador Franco. Mariña goza a única aventura possível no mundo grisalho e raivado que lhe tocou viver: entrar clandestinamente na biblioteca do paço e ler. Ler e roubar, pois exerce a vingança, tão pequena como inocente, de expropriar livros e criar, aos poucos, a sua pessoal biblioteca. A través de Mariña conhecemos o resto de personagens: Cagoendiola, o bem falado vigilante do paço, a mãe, que só sabe lamentar as perdas e danos do golpe de estado, Chelo, tia guerrilheira, e a família Cajide, com Monchi à cabeça, dirigente da Sección Femenina, acompanhada de homens que não valem o que pesam, o esposo apoucado e o filho artista, Luís. A trama desenvolve-se nas semanas prévias ao 25 de julho, data em que o ditador visitará Santiago para comemorar o ano santo. Os astros e a imaginação da autora confabulam-se para esse dia ser o objetivo de boa parte das personagens. Eva Mejuto acolhe na trama, sem que esta ranja, vários subtemas relacionados com o franquismo: a apropriação de terras e a ameaça quotidiana sobre a cidadania, os antecedentes laicos e rebeldes da república, a existência da guerrilha e a resistência passiva, a Operação Termôpilas, as pessoas que tiram proveito pessoal para medrarem, as pessoas a quem as circunstâncias as colocam no lugar que não quiseram, a dupla ditadura que vivem as pessoas diversas… e de fundo: a força que outorga acreditar em um futuro melhor. Aquilo do que mais gostamos: o humor que consegue tirar sorrisos, sobre todo na figura do Cagoendiola. Bom jogo deram os ovos do ditador. E adoramos que Luisito fugira a Barcelona, ida sem volta, oculta liberdade.