Cobiço de mais cobizas

Na Arouça aprendim que podia ter cobiço: desejo de queijo com marmelo, ânsia de uma tarde de passeio, cobiço de que um livro não acabe, ou tenha segundas partes, que bem podem ser boas. Cobiza / María Reimóndez (Ilustrações de Iván R.) / Xerais / 2021 / 18 euros Isso me aconteceu com o Cobiza, de María Reimóndez. Admito que é amiga, mas isso não pode empecer a realidade: o romance parece-me uma alfaia. Uma pequena obra de engenharia em que cada peça cumpre a função precisa, exata. Podemos inserir Cobiza na ficção científica. Em um mundo apocalíptico, dezénios após este que vivemos, o planeta divide-se em dous grandes grupos (não como agora): as Capitais, onde a tecnologia e o poder fazem a vida agradável às suas habitantes (algumas), e os Recunchos, espaços contaminados, degradados e de vida miserenta. Luz, uma rapariga recuncheira, ganha a Lotaria da Fertilidade e passa a habitar na Capital. Luz, tirando de meritocracia (não como agora), acaba por dar em grande científica. Uma das suas criações é a membrana, uma malha de novos materiais que protege espaços concretos (as capitais, o bosque) da contaminação e (também) do controlo tecnológico. Uma membrana é também o que deu criado María Reimóndez com um único material e bem tradicional: a palavra. Muitas são as questões (que nada têm que ver com o agora, lembrai, ficção científica), que ela ligou como fios de teia, sem que sobrem nem faltem na narrativa: as identidades sexuais, o roubo de bebés, a escravidão feminina, o linguicídio, a tecnologia ao serviço do poder e de uns poucos, a espoliação do planeta e das culturas tradicionais, os mares de plástico, o racismo, a construção do relato como álibi da injustiça e, também, ai, a esperança, a possibilidade de pôr essa mesma tecnologia ao serviço, não da humanidade, mas do planeta. A obra conta com um protagonismo coral, em que várias são as personagens que narram, em primeira pessoa, os acontecimentos em que se vem imersas. Não temos uma heroína, mas um grupo de seres (pessoas?) que se aliam para mudarem as tornas. Cada uma dessas protagonistas consegue ter identidade própria, transparente mesmo no estilo: o falar matemático da Dandara, o dizer terroso da Tassi. A obra ganhou o I Premio Pinto e Maragota à Diversidade Sexual e de Xénero. E se algo são as personagens da obra é diversas. Até que ponto! A narrativa pousa numa mui bem estruturada e meditada teoria feminista que serviria (servirá) a muitas para reflexionar sobre preconceitos e (des)certezas adquiridas. Cobiço de virarmos vegetais.