A musealização da política

Viajo amanhã a Buenos Aires. Faço de caso pensado, porque é uma cidade em que já vivi e não sei quando, em um futuro próximo, poderei voltar a ela. Com um verão pesado, úmido, tórrido e impraticável, é sabido que o lugar se esvazia em janeiro e, por pura aritmética, calculo que o risco de comoções sociais maiores pode ser negligenciado. Janeiro é diferente de dezembro, que aguça um sentido de urgência tão absurdo quanto incontornável. (Os choques mais violentos durante a crise argentina de 2001, quando do confisco das poupanças –o corralito– e da renúncia de Fernando de la Rúa, se deram em dezembro.) Fevereiro a Deus pertence O janeiro brasileiro será marcado pela memória daquela triste efeméride: a tentativa de golpe de 8/1/2023, uma semana após a posse de Lula da Silva em terceiro mandato presidencial. Vivemos um ano de tanta normalidade institucional, com resultados recordes na balança comercial e na bolsa de valores, que aquilo parece ter acontecido há mil anos. Além das previsíveis manifestações do Judiciário quanto aos envolvidos na invasão dos edifícios públicos, cronometradas para abocanhar maior espaço midiático, o Governo Federal cedeu um terreno de 50 mil m² na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para a construção do "Museu da Democracia". Isso não é pouca coisa. Trata-se do último espaço "livre", que hoje abriga uma praça, no setor mais representativo da única cidade modernista reconhecida como Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco. O museu foi prometido pela ministra da Cultura logo após os atos golpistas. Nasceu como um memorial "para que aqueles atos não se repitam no futuro" –conhecemos o conceito– e evoluiu para um "espaço dedicado a narrar toda a história da construção da democracia no país". Faço o exercício de imaginar a trajetória desse museu. Ao cabo de vários anos, os ônibus turísticos da cidade terão uma parada a mais de desembarque. Não me entendam mal, conheço a importância simbólica dos museus. Em 2018, por falta de verbas para manutenção, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi consumido por um incêndio que continua a queimar, e não há o que resista a essa ruína. Museu da Memória e da Verdade Para as Forças Armadas, protagonistas incontestes do 8/1 e de eventos golpistas que o precederam, o governo também preparou uma resposta abrasiva. Em setembro, foi anunciada a criação de um "Museu da Memória e da Verdade" em homenagem às vítimas da ditadura militar. Deste é que eu nunca mais ouvi falar. Em um museu de coisas mortas estão os imperativos políticos de um governo que, pelo temor de despertar fantasmas, patina em um discurso difuso de bem comum que pretende abraçar o financista, o militar, a classe média, o favelado e o morador de rua. O Estado de Direito redivivo Em dezembro de 2015, lembro-me de ter ido a um ato de "Enterro da Constituição" organizado por estudantes de Direito na ocasião da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Foi uma coisa bastante macabra, iniciada à hora da penumbra em torno de um caixão de verdade, onde –suponho– devia repousar um exemplar físico da Constituição Federal de 1988, ornando com aquela literalidade juvenil. Conforme se revezavam no púlpito as falas de juristas, religiosos e políticos de baixo escalão, a escuridão se aprofundava até o breu, entrecortada apenas pela iluminação débil de poucas lanternas de celular em uma região erma e perigosa do centro da cidade de São Paulo. Durante aquela provação, eu comigo mesma só conseguia pensar, primeiramente, em como sairia dali e, em segundo lugar, que aquele defunto ainda estava muito quente. Tão quente estava, que ressuscitou amiúde, inclusive na eleição, posse e confirmação da posse de Lula da Silva. Agora também ressuscita em forma de museu. É assim: a esquerda no poder vem respondendo à violência política com a esperança de ação de instâncias jurídicas e com a criação de museus. Gostaria de acreditar que um discurso propositivo das esquerdas não é tão impotente quanto creem; que os poderes socioeconômicos representados nas câmaras legislativas podem ter um lastro político limitado, ou limitável; que a cultura do pelomenismo ("pelo menos não estamos presos", "pelo menos aprovamos uma reforma tributária") pode vir a ter um horizonte brilhante. Que os museus vivem e respondem de fato. Como adepta moderada do método científico, admito que não tenho opinião formada a respeito, porque não posso ter. Parece-me, em todo caso, insuficiente.