O descontentamento foi às urnas

Os primeiros resultados das eleições de 10 de março pareciam animadores. A abstenção foi a mais baixa dos últimos 30 anos e foi batido o recorde de número de votantes numas eleições. Quando foram conhecidas as primeiras projeções era difícil antecipar o partido vencedor, mas já era claro o forte crescimento da extrema-direita. Ainda sem contabilizar os votos da emigração que decidem quatro dos 230 deputados da Assembleia da República, podemos avançar com as seguintes conclusões. Por um lado, a Aliança Democrática (AD), coligação de direita que inclui o PSD (centro-direita), o CDS-PP (direita tradicional) e o PPM (monárquico), teve a vitória mais curta de sempre, ganhando por apenas três deputados. Por outro, depois da maioria absoluta conquistada em 2022, o Partido Socialista (PS) perdeu 40 deputados e 13 pontos percentuais da votação, restando-lhe liderar a oposição. Além disso, depois de quase 10 anos de maioria parlamentar, a esquerda registou o número mais baixo de deputados desde 1991. Em sentido contrário, o partido Chega (extrema-direita) foi o que mais cresceu nestas eleições, tendo conseguido 18% dos votos que lhe valem 48 deputados. Os motivos destes resultados são complexos e as suas consequências imprevisíveis. Mas há dados que nos ajudam a compreender o que está a acontecer. A vingança dos territórios que não importam Tal como se tem verificado nos resultados eleitorais de outras democracias, em Portugal o descontentamento parece ter um caráter geográfico onde uma parte significativa das populações dos territórios periféricos deposita a sua confiança na extrema-direita. Em Faro, o distrito do Algarve, o Chega foi o partido vencedor. Em Santarém, Setúbal e Beja, distritos do Alentejo, ficou em segundo lugar. A norte, a extrema-direita é a terceira força política em todos os distritos oscilando entre 15% no Porto e 19% em Viana do Castelo. Os discursos populistas encontram terreno fértil para proliferar em vários pontos do país A extrema-direita ganhou eleitores em quase todo o país. Mas quando consideramos os resultados a nível municipal há diferenças. Em Elvas, município alentejano de fronteira, 37% dos eleitores votaram Chega. O partido foi a segunda força política em Valença, com quase 30% dos votos, e no Porto registou o pior resultado (9,9%), o único abaixo dos 10%. Nos municípios de Lisboa, Oeiras e Coimbra a votação rondou os 11%. As explicações para estas diferenças territoriais não são simples. Os investigadores Pedro Magalhães e João Cancela publicaram um estudo recente onde mostram que o partido de extrema-direita é bem sucedido em zonas onde há um "um sentimento de negligência política". De facto, o partido reúne com sucesso num mesmo coletivo votantes anti-PS e antissistema, esquecidos do mundo rural, pessoas atingidas pelas diferentes crises, conservadores, nostálgicos do antigo regime e racistas. Querem voltar a um passado que se convenceram ser melhor do que o presente. O partido reduz a solução dos problemas da população portuguesa a duas ideias principais. Por um lado, a pertença à nação e aos valores tradicionais da família e da igreja. Por outro, a ordem, usando como principais bandeiras o combate contra a corrupção, contra o crime, e a defesa das forças de segurança. O fim da excecionalidade portuguesa Durante muito tempo falou-se da excecionalidade portuguesa em relação ao crescimento da extrema-direita. Portugal é especialmente propenso a mitos de identidade coletiva e este foi mais um deles. Desmoronou-se quando vimos que neste país de "brandos costumes" há mais de um milhão de votantes num partido abertamente racista, xenófobo e populista. No discurso de celebração dos resultados, o líder do partido considerou uma das suas principais batalhas o combate ao que denomina de "ideologia de género". Como alguns avisaram, Portugal não podia ser uma exceção. Primeiro porque partilha com outras sociedades europeias os problemas do agravamento das desigualdades, de enfraquecimento dos serviços públicos, a reação ao avanço de agendas progressistas e o sentimento de perda de qualidade de vida. Além disso, em Portugal os salários não têm acompanhado o aumento dos custos de vida e há zonas onde é difícil pagar uma casa para viver. Os discursos populistas encontram terreno fértil para proliferar em vários pontos do país. O descontentamento foi às urnas e empoderou um projeto político perigoso. Esperemos que a democracia portuguesa, no momento em que cumpre meio século, seja capaz de reconquistar a confiança deste um milhão de eleitores. Para tal é fundamental que os líderes políticos estejam à altura do desafio.