A política nua

Na madrugada de 5 de outubro, três ortopedistas estavam no Rio de Janeiro por ocasião de um Congresso na área e foram executados em um bar à beira da praia. Homens vestindo bermudas, sem nenhuma tentativa de esconder a face, dispararam mais de trinta vezes contra o grupo e não levaram nada das vítimas. Um dia depois, a polícia encontrou os corpos de suspeitos do crime, também executados, em um carro abandonado. Tendo ocorrido em zona disputada por milícias e facções narcotraficantes, a polícia trabalha com a hipótese de uma chacina “por engano”. O mistério já parece resolvido: “é quase certeza”, disse um comandante, que foram confundidos com os milicianos que eliminaram um chefe do grupo rival em setembro. Os responsáveis pelo desastre já teriam sido julgados no chamado Tribunal do Crime e expostos em praça pública - um aceno justiceiro da facção às autoridades-. O crime, no entanto, guarda uma semelhança incômoda com outra execução, ocorrida na mesma cidade em 2018, a da vereadora Marielle Franco. Um dos médicos assassinados era irmão da deputada federal de esquerda Sâmia Bonfim, que vinha recebendo ameaças contra si e a família devido à sua atuação parlamentar. O formato das milícias avança Segundo o Mapa dos Grupos Armados do RJ (2019), 57,5% do território da cidade e 3,7 milhões de pessoas vivem sob domínio ilegal. O formato das milícias avança com mais rapidez, amealhando um poderio e área maiores do que todas as outras facções somadas. O sucesso se deve ao apoio de setores da política e da polícia, com efetiva capacidade de mobilização eleitoral e infiltração nos três poderes. Para a população, o controle dos milicianos implica o pagamento de taxas de “proteção” e sobre o comércio local, o controle sobre serviços como transporte alternativo e instalações de TV, o lançamento de candidatos e pressão sobre os eleitores. Os “kids pretos” são forças especiais compostas por militares treinados em “operações de guerra irregular” Não adianta ansiar por ver a política sair da seção policial do jornal: em alguma medida, política é sempre polícia. Diferentes formas de política, diferentes formas de policiamento, mas são uma e a mesma coisa. Outra pílula amarga a engolir é que a família Bolsonaro, por exemplo, com sérios indícios de participação no atentado contra Marielle Franco, não é o patógeno, mas apenas um sintoma. Camisas negras e Kids pretos Em seu mito originário, as milícias cariocas nasceram para proteger os moradores contra traficantes e bandidos. Afinal, se o sistema não funciona, faz-se justiça com as próprias mãos usando meios mais ágeis e alheios à legalidade estrita. Essa cosmologia permite à extrema direita fazer conexões implícitas entre si e as milícias e, explicitamente, entre a esquerda e o narcotráfico, ainda que sem nenhum fundamento. Jair Bolsonaro achou por bem pronunciar-se sobre a execução dos médicos: “[ocorreu] praticamente do lado do condomínio onde tenho uma casa. No Rio de Janeiro, assim como no Brasil todo, a criminalidade vem crescendo. Porque o atual governo, em especial, tem uma proximidade muito grande com a bandidagem”. (No condomínio do ex presidente também vivia o acusado de realizar os disparos que mataram Marielle Franco, Ronnie Lessa.) As investigações sobre a invasão das sedes dos três poderes em Brasília, ocorrida em 8 de janeiro, estão revelando novos atores. Os “kids pretos” são forças especiais compostas por militares treinados em “operações de guerra irregular”, como sabotagem e incentivo à insurgência popular. Integrantes dessas forças chegaram a ocupar 26 cargos no governo Bolsonaro - embora este nunca tenha conseguido entrar para o grupo em sua acidentada passagem pelo exército. Vídeos do 8/1 mostram indivíduos treinados executando ações estratégicas, como a escalada até o teto do Congresso Nacional para abrir as escotilhas de acesso e incentivar a entrada dos manifestantes. Em 29/9, a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão contra o general Ridauto Fernandes, ligado aos kids pretos, como executor e possível idealizador da tentativa de golpe. Um vídeo comemorativo das Forças Especiais no Facebook contém a seguinte frase: “O perigo como irmão, a morte como companheira”. Nós sabemos o que ela evoca, viva! Se a violência é a regra; se pensar, como dizia Umberto Eco em sua descrição do fascismo, é uma forma de castração; e se tudo isso se torna cada vez mais visível no mundo a olho nu, no próximo texto analisaremos aqui a performance do Brasil na presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU e o impacto de eventos recentes na flutuação dos preços internacionais do petróleo.