Miguel Araújo: escrever Portugal

—Por que disse que é um crime que não haja mais eventos como Maré? Crime pode ser uma palavra forte demais, mas é pena porque é uma língua tão próxima, praticamente a mesma, não é? E acho que o relacionamento entre as pessoas da Galiza e do norte de Portugal não é a mesma que o doutras partes da raia portuguesa. António Zambujo é de Beja e para eles é quase a mesma cultura. E eu sinto que com a Galiza não há tanto disso. É raro ainda ver artistas galegos ir tocar ao norte de Portugal. Entre Portugal e Brasil, os brasileiros não ouvem música portuguesa, mas os portugueses ouvem muita música brasileira. Mas entre a Galiza e o norte de Portugal o divórcio parece mútuo. —Mas você já tinha tocado antes na Galiza… Sim. Em 2015 fiz uma pequena gira pela Galiza. —A sua relação com a Galiza vinha de antes. Há uma história com Vigo e Bryan Adams… Íamos ao Corte Inglês de Vigo passear e fazer as compras. Eu era muito pequeninho e só queria a cassete de Bryan Adams. Foi o primeiro álbum que tive na vida. —Aos 11 anos recebe um baixo de presente e começa a juntar melodias e letras… Os meus tios tinham uma banda amadora de covers. Os meus primos e eu fizemos uma banda e os nossos tios e os meus pais ofereceram-nos uns instrumentos e então começamos a tocar. Foi pelos 14 ou 15 anos, mas eu comecei aos 11. Tinha um baixo e um violão e inventava melodias e letras. Tinha muita vergonha. Hoje em dia continua a ser um ato clandestino. Se entra alguém da minha família, tenho de parar. —Começou a compor de forma profissional com Os Azeitonas. Tinha se calhar 27 anos. Ao princípio era algo como de brincadeira, fazíamos uma música pirosa... Mas a coisa foi ganhando fãs, tocávamos num bar, havia uma telenovela chamada Morangos con azúcar que usou uma música nossa como banda sonora… De pronto íamos tocar a festivais, enchemos o Coliseu e tornou-se numa coisa muito grande. Depois, entre o meu primeiro disco só, de 2012, e 2016 fui pai e era ter concertos quase todos os dias… Não podia seguir assim e saí da banda. —É muito impressionante o vídeo de "Talvez se eu dançasse" na Avenida dos Aliados do Porto na passagem de ano. É uma música sobre a preocupação pela nossa imagem... Não tinha a ver só com o meu concerto, mas, sim, havia umas 100.000 pessoas. O presidente da Câmara anterior, Rui Rio, não era muito adepto de festas, era muito conservador, muito comedido com a cultura. O novo, Rui Moreira, é todo o contrário. Gasta muito nas festas, na cultura e na música ao vivo e conseguiu que a passagem de ano nos Aliados torna-se em referência nacional. A música é... um bocadinho aquela autoconsciência que nos impede fazer certas coisas, ser felizes. Tem a ver com a minha saída da minha gravadora, que era a Warner. Senti-me sozinho, no bom e no mal sentido. Senti que ia ser muito observado. Esta música foi o meu exercício de fazer música com liberdade sem olhar para a consequência. E recebi mensagens muito inspiradoras de pessoas que se viram refletidas. Pessoas que largaram o emprego porque não os fazia felizes e começaram a fazer qualquer outra coisa… —Está a ter muitos menos concertos. Como está em Portugal a situação na música ao vivo por causa da pandemia? Em Portugal os auditórios podem encher-se até a metade da sua capacidade. Mas acontece que as pessoas sentem-se inseguras e não vão às salas de espetáculo mesmo tendo tirado os bilhetes com meses de antecipação. Foi publicada uma lista que dizia que ir a salas fechadas é do mais perigoso que se pode fazer e as pessoas têm medo. Antes da Covid-19, investir em cultura era política e eleitoralmente rentável, mas agora é o contrário. E o trabalho passou para níveis muito próximos de zero. —No Maré cantaram "Ainda estamos aqui", que diz que foi premonitória… É um bocado uma brincadeira porque todas as músicas agora parecem premonitórias... Há um programa em Portugal de entrevistas de vida que se chama Alta definição. O apresentador, Daniel Oliveira, pediu-me que fizesse uma música sobre o facto de na vida nada ser permanente. A única certeza que temos é que ainda estamos aqui. Afinal é uma música de amor: ainda estamos aqui e eu tenho-te a ti. —Quando fala do seu último livro, Seja como for, diz que escreve as suas crónicas para a Visão, que este livro e outro anterior recolhem, na última meia hora antes de acabar o tempo. Quando explica como trabalha, diz que a inspiração chega quando está com tarefas práticas. Não gosta da idealização do artista. Eu já fiz residências artísticas em aldeias e sítios remotos onde supostamente a inspiração flui com mais naturalidade, mas não foi assim. A mim as coisas que me dispersam ajudam-me a ficar mais concentrado. Sou capaz de estar a escrever uma música com a minha filha ao colo. Eu preciso de fazer coisas: lavar a louça, passear… Uma condição muito forte para a minha criatividade é correr. Desde que fiz o meu estúdio em casa e decidi que não ia dar tantos concertos por ano, gravar, compor e escrever são parte do dia a dia. Faz parte das minhas tarefas domésticas. Não tem a ver com o conceito mais idílico e romântico do artista. —Está a publicar singles. O seu último disco é do 2017. Está a trabalhar no novo… Eu estou a gravar muitas músicas e achava que não ia quitar mais álbuns. Contudo, durante este período de paragem forçada total comecei a frequentar mais o estúdio e vi que havia dez músicas que faz sentido que estejam todas juntas. Decidi lançar um disco e vai-se chamar Peixe azul. Há um conjunto de singles que não formam parte deste álbum e que estão a sair. —O seu último disco, Giesta, é de memórias da sua infância. Repetiu muito que não é um disco de saudades. Por que? Eu não sou saudosista. Não tenho nada contra a saudade, mas a saudade, que parece ser o estado de espírito de Portugal, não se aplicaria a mim… Os portugueses são muito orgulhosos da palavra saudade, que parece que não existe tanto assim noutras línguas. Eu sinto o contrário da saudade perante a vida. Sinto o contrário e parece que não existe uma palavra para expressar o contrário. Eu sou muito adepto do futuro. —Já tinha escrito antes da infância. Em "José" ou "Capitão Fantástico", por exemplo. "José" não fala da minha própria infância. Foi escrita para o filho de uns amigos que estava a dar os seus primeiros passos. "Capitão Fantástico" foi escrita para um sobrinho. Fala dessa espécie de impunidade que as crianças prodígio têm perante os pais e os avós, podem fazer tudo o que quiserem porque são fantásticos... —Há um vídeo muito lindo em que está a provar uma música sua com a sua filha. Por que confia mais no gosto musical das crianças que na dos adultos? A música popular tem um valor relativo. Umas pessoas vão gostar de uma música e outras não. Eu desconfio da crítica musical porque tenta dar um valor absoluto a algo que só tem um valor relativo. Aos 13 ou 14 anos é quando se formam as tribos e a música é uma celebração da vida muito intensa nessa altura. Por isso digo que ia ser melhor se a crítica musical fosse escrita por crianças de 13 e 14 anos. —Em Giesta há uma canção que fala do Axl Rose. Por que? Portugal não fazia parte dos circuitos internacionais de música ao vivo. As bandas grandes não iam a Portugal. Desde que vieram os Rolling Stones, Portugal começou a estar nos roteiros internacionais. Os Guns N'Roses foram ao estádio do Sporting Clube e foi um grande acontecimento. Toda a minha geração arranjou a maneira de os ir ver. Tiveram que pedir aos pais, poupar… Eu não fui. Neste concerto Axl Rose entrou em palco e escorregou e caiu no chão. Ficou chateado porque havia ali não sei o que. Depois, cantou deitado e não falou. Foi uma desilusão muito grande, como o fim do rock para toda uma geração. —Crónicas da cidade grande, o seu segundo disco, fala de um homem mediano em tudo ao que lhe acontecem coisas muito normais. Você definiu-o como um disco "antiépico". E isso tem muito a ver com todo o seu trabalho. Uma vez vi por acaso num programa americano que havia um livro, que se chamaria O zé ninguém quotidiano traduzido ao português, em que o autor tinha feito uma pesquisa sobre a média. Em média um americano faz tal coisa… Tudo assim. E eu achei engraçado porque de facto quem sustenta a base da pirâmide da nossa civilização, da nossa história, são as pessoas medianas. Fiz um álbum de música popular portuguesa com a ideia desse livro. "Antes da covid-19 investir em cultura era política e eleitoralmente rentável mas agora é o contrário. Agora o trabalho passou para níveis muito próximos de zero" —Talvez o seu sucesso tenha a ver com isso. Fala de coisas com as que qualquer pessoa pode identificar-se. Todas as pequenas coisas são grandes coisas, disse. Os artistas dos que eu mais gosto na música têm assim esse estilo… Chico Buarque, Mark Knopfler… são pessoas que não têm ar de artista, não têm posse de artista. —Em relação com isso, por que disse que desconfia das opiniões profundas? Eu estava a tentar citar a Fernando Pessoa, mas citei mal porque dizer isso já é uma opinião profunda, então é uma contradição. As pessoas que têm confissões e opiniões muito profundas são aquelas que nem sequer deviam tê-las. Quer dizer, uma pessoa sensível muda de opinião e é normal. O Harry Nilsson disse que todas as coisas são o que são e o seu exato contrário. Qualquer pessoa que tenha uma opinião muito marcada, por exemplo, sobre as redes sociais, eu já desconfio. As redes sociais podem ser as melhor coisa do mundo e a pior e pelas mesmas razões. —Em Cinco dias e médio, o seu primeiro disco, não havia uma narrativa comum, senão músicas diferentes. Será assim no novo álbum? O novo álbum tem um paralelo com o primeiro mais notório. No primeiro gravei eu os instrumentos todos. É mais caseiro, mais modesto, menos produzido que o segundo, no que tenho uma banda. Neste novo disco sou eu com o baixo, a bateria, o piano… Toco eu mais ou menos todos os instrumentos e soa mais simples, coma o primeiro disco de Paul McCartney, o primeiro de Paul Simon, os de Cat Stevens… O meu segundo disco foi mais produzido: com arranjos, cordas… —Em Cinco dias e médio estava "Os maridos das outras", música que teve um grande sucesso em Portugal. Há humor nesta canção, como o há em muitas das suas letras… Nisso há influência da música de Chico Buarque, Carlos Tê, João Monge… Eu não acho que a minha música seja humorística, mas o humor é um bom jeito de pegar nas coisas. —Outra coisa habitual nas suas letras é o otimismo. "Autopsicodiagnose" fala de fazer o que possa e tirar para adiante. Muitas outras canções falam de deixar rolar as coisas. Há um livro muito importante chamado Factfulness, de Hans Rosling. Ele era consultor de Bill Gates, compilou muitos dados e observou que a vida vai melhorando a través dos tempos. Ele propõe depois um questionário e as pessoas falham 90% das perguntas. As pessoas pensam coisas muito piores do que é a realidade e isso tem muito a ver com os noticiários. No fundo, há razões factuais para ser otimista. —Por que é incrível a história de Gabriela de Jesús, protagonista dum dos seus últimos singles? O nome é uma piada, é muito pomposo. É uma música de cinco minutos, sem refrão. Eu achei que não ia ter muito sucesso nas rádios, mas não foi assim. É uma história inventada. Lourizela existe. Vi uma placa na autopista e tirei dela a ideia. —Disse que se sente herdeiro de Rui Veloso, Jorge Palma, Carlos Tê, Mafalda Veiga… Rui Veloso representa na música portuguesa o que João Gilberto na música brasileira. Ele junta a música anglo-saxónica (Eric Clapton, Dire Straits, The Beatles etc) com letras que falam da realidade portuguesa. Eu tinha 10 ou 11 anos e escutava aquelas letras que falavam de lugares que eu conhecia. Deu-nos a mim e à minha geração o cancioneiro da música popular portuguesa. Antes, as pessoas jovens se juntavam para tocar com a viola a Pink Floyd ou The Beatles, por exemplo, porque a música portuguesa era algo antigo, de orquestra, com letras que não nos diziam nada… —Identifica-se com a música pop, suponho que nesse sentido. Pop é um diminutivo de popular, como folk. A música popular, como dizia Bob Dylan, é a que denuncia com mais eficácia o seu tempo. A música dos anos 60 soa aos anos 60, a dos anos 70 aos anos 70… —Há anos que colabora com o António Zambujo. E são amigos. Encontrámo-nos por acaso num bar em Lisboa, o Berimbar, e começamos a tocar. Ficamos amigos até hoje. Ele estava a trabalhar em Lisboa num espetáculo musical sobre Amália Rodrigues que depois veio para Porto e eu e os meus amigos fizemos de cicerones. Depois ele gravou o seu primeiro disco e eu comecei com Os Azeitonas. Ele começou a ter sucesso e foi uma das pessoas que mais me motivaram para lançar o meu primeiro disco só. Compus muitas músicas para ele. Depois fomos convidados para um festival de conversa, mas nós fizemos uma coisa com música, no teatro São Jorge. A partir disso fizemos um espetáculo que levamos ao Coliseu. Incrivelmente, o sucesso foi tal que ficamos por 28 dias. Gravamos um disco. Ultrapassamos o 24 nights de Eric Clapton… Nunca pensamos que isso fosse suceder. —Também trabalhou com Marcelo Camelo, Ana Moura, Carminho, Raquel Tavares, Ana Bacalhau, Pedro Silva… E na Galiza com Roger de Flor também. Colaboro com muitos amigos, sim. —Com João Só, depois de ter o seu blogue, o Blogue do Mendes. Ou com o cómico Nuno Markl. Quando tinha o blogue eu estava com Os Azeitonas. O que não tinha muito a ver com o repertório dos Azeitonas, ia para o blogue. Muitas das minhas músicas do meu primeiro disco vêm dele. Mendes é um nickname meu que usava o meu tio e que usam os meus amigos. Com Nuno trabalhei num monólogo dele em que eu fazia micromúsicas. —Não nasceu em Porto, mas mora lá desde a infância. Não parece um mau lugar para a formação dum músico. O seu tio explicou-lhe com um debuxo como colocar os dedos no baixo e do resto... foi a aprender. Nasci em Maia e fui para Porto aos 10 anos. E sou autodidata e sim, muitos dos grandes artistas da música portuguesa moderna são do Porto. Rui Veloso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Táxi, GNR… Porto é um grande berço de música. Isto orgulha muito aos portuenses.