Crise e austeridade: já ressoam campas de “retirada dos estímulos” e de demanda de novos planos de ajuste

O estourido da crise de 2008 não foi mais um episódio cíclico, mas uma crise sistémica comparável à dos anos 70. Aliás, a crise não chega por acaso e têm uma dimensão mais profunda que a dos detonantes com que se manifesta, como, por exemplo, a diminuição da demanda suficiente, manifestação superficial da superprodução de mercadorias, resultado da acumulação excessiva de capital. Dá-se uma fugida de capitais do investimento produtivo para o financeiro para evitar perder valor pela inflação e na procura de maior retorno, que produz um movimento contínuo que busca diluir o risco. A engenharia financeira desenha a titularização dos créditos de baixa qualidade, com garantias insuficientes ou “subprime”, que, fragmentados e unidos em pacotes com outros ativos, conseguem obter boa qualificação creditícia e circulam arredor do mundo graças a desregulamentação dos movimentos de capital. O risco da banca depositante pelo crédito gerado é transmitido a terceiros mediante os mercados financeiros. Os derivados Neste cenário eclodem com especial protagonismo os “derivados”, produtos financeiros cujo valor fica vinculado a evolução dos preços dum ativo subjacente, e que a sua vez se constituem e transmitem como mais um ativo. Ademais ressaem os mercados de opções, de permutas ou swaps, etc. Uma cadeia sem fim de enlaçamentos especulativos nos que só logram sobreviver os grandes capitais especulativos que podem assumir grandes perdas ou influir na informação dos mercados no seu favor. Chega-se a especular com a possibilidade de incumprimento de um devedor, o que obrigaria o emissor dos chamados credit default swap a pagar ao seu portador um importe tão grande quanto maior fosse o risco de incumprimento da dívida. Até mesmo pequenos aforros procedentes de renda do trabalho sucumbem, vítimas da propaganda e a cobiça bancária, procurando manter o valor das suas poupanças. Contudo, enquanto a morosidade foi controlada e o preço da vivenda seguiu a subir não houve problema. Precisamente, as expectativas de contínuo aumento do preço da habitação incrementam o volume de crédito hipotecário muito acima dos preços nessa altura. O folguedo continuou até que em 2007 começa a aumentar a taxa de desemprego nos EUA, que com o alto endividamento das economias domésticas faz com que os títulos desses ativos e o preço das vivendas caiam. A sobre-exposição da banca a esses ativos tóxicos provoca a perda de valor dos seus rendimentos. Por isso os investidores endividados reduzem as suas despesas numa tentativa de reduzir a sua dívida. As receitas fiscais diminuem, mas a despesa pública aumenta devido ao aumento dos subsídios de desemprego e do consumo público, tudo para compensar a queda da procura privada. Paradoxalmente, a maior produtividade derivada da intensificação tecnológica e a menor ponderação na produção do fator trabalho, exclusiva fonte criadora de valor, portanto, contém a obtenção de mais-valia e rentabilidade num contexto de aumento dos juros, resultando em crise de dívida: novo endividamento para pagar os custos crescentes da dívida viva. O capital financeiro Ao mesmo tempo, o setor público, mediatizado pelo capital financeiro avalia a falência de certas instituições bancárias como fonte de possíveis efeitos sistémicos e decide-se o resgate bancário sem que, por outro lado, se detiveram os movimentos especulativos. No entanto, permite-se que o Lehman-Brothers caia, rebenta a bolha financeira e imobiliária, aumentam os juros, caem os índices bolsistas e paralisa-se o fluxo de liquidez nos mercados interbancários. O crédito e o investimento contraem-se, potenciando os efeitos da crise, mas os mercados de alto risco são preservados, porque permitem ao capital financeiro apropriar-se de uma fração de mais-valia extraída na economia produtiva, iludindo os custos da sua geração. Quem acabará por pagar a fenda entre os preços reajustados dos ativos reais, objetos de especulação, e o enorme volume da bolha imobiliária-financeira? O capital financeiro obriga o setor público a um galopante endividamento para resgatar aos bancos sob ameaça de terríveis consequências sistémicas. Em seguida, a prédica da teologia dos mercados e a mística tecnocrática: trás o suposto frenesi de endividamento público, efeito do “esbanjamento e desbarato político”, o senso comum aconselha continência fiscal e consolidação orçamentária. Austeridade assimétrica: pagará quem nada se beneficiou do capitalismo de casino. A disciplina fiscal de Bruxelas segue suspensa até 2023, mas já ressoam campas de “retirada dos estímulos” e de demanda de novos planos de ajuste a médio prazo.