Cacao Meravigliao
Hai uns dias, vendo umha tertúlia da TV, lembrei aquele curioso experimento da RAI na década de 80. Entre 1987/88 o canal da Radiotelevision Italiana emitiu o programa Indiotra Tutta! (Todos de volta!) , apadrinhado por um curioso produto: o Cacao Meravigliao.
Hai uns dias, vendo umha tertúlia da TV, lembrei aquele curioso experimento da RAI na década de 80. Entre 1987/88 o canal da Radiotelevision Italiana emitiu o programa Indiotra Tutta! (Todos de volta!) , apadrinhado por um curioso produto: o Cacao Meravigliao. O spot publicitário era mui atractivo: música latinoamericanana de sabor abraseleirado, linguajar de ressonâncias lusófonas, moças a dançarem cantarolando as virtudes das três variantes (sabor forte, sabor suave e baixo em calorias) dum cacau que era algo mais que maravilhoso.
"Sentim --porras!—que havia que avançar, liquidar estruturas obsoletas, deitar para o lixo da história todo o velho, mercadotécnia incluída. Chegar ao futuro".
E lembrei também as saudades proustianas que o anúncio despertara em mim, a morrinha do recendo e gosto achocolatados daquele Cola-Cao, de toada nom menos contagiosa, com que adoçávamos o amargor franquista dos cheiros e sabores na Galiza da minha infáncia. E os ripios do seu jingle. Aquele “negrito del áfrica tropical” e o seu ciclista amo da pista, conhecidos e repetidos até fartar por todas as crianças num ecoar incessante que é a melhor das publicidades possíveis. Anos mais tarde chegaria também, e com ela o seu próprio e pegadiço jingle, a creme Nocilla (Que merendilla!) de Starlux, imitaçom dum original italiano que muita fatia untou nos sessenta. Mas na altura eu já era crescido demais para merendas de pao e chocolate.
Lembrei, sim, mas também sentim que a cançom era tosca, primária. Como tosco e primário me pareceu o próprio Cola-Cao, produto de umha época politica, social e cultural periclitadas. Sentim --porras!—que havia que avançar, liquidar estruturas obsoletas, deitar para o lixo da história todo o velho, mercadotécnia incluída. Chegar ao futuro.
Em todo economia dinámica, por definiçom, nascem novas mercadorias e essas mercadorias, precisamente por serem novas, tenhem de ser publicitadas para o público ficar a saber que existem e ser persuadido a comprá-las. É o abc do mercado.
Persuadido deveu ficar (embora nom necesssariamente informado) o público italiano de finais dos 80 porque pouco tardou em demandar o cacau maravilhoso em lojas e supermercados. E as lojas e os supermercados em o demandarem aos distribuidores. E estes ao fabricante-patrocinador do Indiotra Tutta ! A cadeia ascendente figera o seu trabalho e activara mecanismos que, agora em sentido descendente ,deveriam permitir satisfazer a nova necessidade ( ou talvez mais exactamente a nova forma de satisfazer umha velha necessidade). Produziu-se o chamado efeito rebanho, estimulado por –no mínimo- duas razons : 1) o desejo de estar onde está a maioria porque a excentricidade pode gerar custos ao indivíduo que abandona o rebanho; 2) a aceitaçom da opiniom maioritária porque ir contracorrente fai o indivíduo duvidar da sua capacidade analítica. Do lado da produçom, o efeito mais imediato foi provocar a reacçom das empresas do ramo, que começarom a actuar antes mesmo de a nova mercadoria ter presença física no mercado, na esfera dos preços, diversificando os seus próprios produtos e o seu marketing.
"Podemos realmente, nós que sabemos como lançam o anzol, ser seres inermes diante da força persuasiva da TV?"
Com tanto entusiasmo na arena, nom estranha que a decepçom fosse grande quando a RAI decidiu desvelar a verdade do experimento e contou ao mundo que em realidade o tam intensamente procurado Cacao Meravigliao simplesmente nom existia, que era um produto ficticio como ficíticio era o patrocinador do programa. Quem quigesse satisfazer a necessidade ou o simples desejo do cacau brasileiro, teria que buscar outras alternativas.
Nom se pode negar que o experimento tivo umha óbvia consequência positiva: obrigou outros produtores a tornarem mais atractivos os seus produtos, “aggiorná-los”, diversificar a oferta. Mas também chantou umha espinha difícil de engolir nas nossas arrogantes certezas de urbanitas ocidentais. Na nossa agora abalada convicçom de sermos persoas bem formadas e informadas, nom proclives a morder a isca do anúncio publicitário. Nom digamos da publicidade televisiva, torpe armadilha para persoas incautas.
E a pergunta ainda nos rói por dentro: Podemos realmente, nós que sabemos como lançam o anzol, ser seres inermes diante da força persuasiva da TV? Podemos --nós, persoas instruídas, que sabemos deconstruir o discurso televisivo—ser tam vulneráveis que umha campanha bem montada fai com que arranquemos a correr atrás dumha miragem? Pior ainda: Será que podemos mesmo morder um anzol sem engodo?
Pois, sim. Podemos.