No 101 aniversário da morte de Mário de Sá-Carneiro

O 26 de abril de 1916 morre Mário de Sá-Carneiro após ingerir cinco frascos de arseniato de estricnina. Nascido em 1890, em Lisboa, passou parte da vida em Paris, onde contactou com os grandes artistas do seu tempo. O relato de toda essa aventura está nas cartas que trocou com Fernando Pessoa, escritor, “irmão de Alma” com quem fundou em 1915 a revista Orpheu, um dos mais importantes acontecimentos literários do século XX em Portugal.

José Araújo, amigo e único confidente em Paris, escreve a Pessoa em 10 de maio contando como conheceu Sá-Carneiro e como foi sua morte e introduzindo no relato uma misteriosa rapariga.

 

Paris, 10 de Maio de 1916

Ex.mo Senhor Pessoa:

Recebi hoje sua carta, desculpe não lhe ter respondido como dizia no meu cartão, mas o Carlos Ferreira ficou de me dar o seu endereço, e como se tinha esquecido, ainda hoje estou esperando o mesmo. Já aqui tinha uma carta preparada para o meu amigo, carta que inutilizei pois preciso de ser um pouco mais extenso.

Vou pois contar-lhe minuciosamente o triste fim do nosso pobre Sá-Carneiro; mas antes vou dizer-lhe em duas palavras como o conheci e como em tão pouco tempo, eu tive um dos meus melhores amigos, e com certeza o mais íntimo. Conheci-o há uns seis meses apresentado por Carlos Ferreira num dos restaurantes do Faubourg e desde esse dia, eu tive um bom amigo e vice-versa, não sei explicar-lhe como se deu este caso bem extraordinário de mais que eu não sendo um escritor nem poeta, mas pertencendo ao comércio, cousa bem material; não sei; um mês depois não se passava um dia sem que nós estivéssemos conversando em qualquer café, horas e horas, por aqui já o meu amigo deve calcular quanto desgosto tive com a sua morte, e como ele e mais ninguém me compreendia. Desculpe-me e a esta mal alinhavada carta mas sou nervoso, portanto não se admire de alguma falta. Foi no mês de Março pouco mais ou menos que Sá-Carneiro teve a infelicidade de encontrar num dos cafés de Montmartre uma rapariga por quem teve grande interesse, digo interesse porque ainda hoje não sei se era amor, simpatia, ou ódio, não sei; desde então Sá-Carneiro mudou bastante, vinha aqui ao escritório sempre apressado, havia mesmo semanas que só vinha aqui três vezes, e mais nada. Assim, chegava aqui e dizia-me: Araújo preciso falar-lhe venha comigo a um café; saíamos e então ele coitado, contava-me o que se passava: que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher; um mistério, um horror, e por aqui fora muito nervoso, e contava-me o que se tinha passado (antes tenho que lhe dizer que ele tomava estricnina em grande dose). Muitas vezes eu perguntava-lhe se ele realmente gostava dessa mulher, a sua resposta invariável era: Não gosto dessa mulher, juro-lhe que não gosto dessa mulher. Calcule o meu amigo o que eu podia fazer nesta situação:

Um dia, 26 entrou ele no meu escritório como costumava, depois de falarmos uns momentos disse-me - Araújo preciso que você vá hoje a minha casa ás 8 h, em ponto, sem falta. Assim fiz, quando entrei no quarto, notei que ele estava deitado, muito naturalmente perguntei se lhe doía a cabeça; foi então que ele disse - acabei agora de tomar cinco frascos de arseniato de estricnina, peço-lhe que fique - corri logo abaixo a buscar um copo de leite, ao mesmo tempo dizia ao criado para subir com o mesmo, enquanto eu ia ao comissariado procurar um médico e ao mesmo tempo um automóvel para o conduzir a um hospital, tudo isto tinha sido feito rapidamente, quando subi com os dois agentes para o transportar ao automóvel, foi então que presenciei a cousa mais horrível que se pode imaginar. Sá-Carneiro agonizava [...] Às 11 horas entrámos novamente no quarto, o comissário dois agentes e eu. Sobre a mesa bem à vista estava uma carta para mim, mais atrás nova carta para o Pai, outra para o meu amigo, e mais duas, uma para a tal rapariga, outra para Carlos Ferreira. Sobre o fogão uma folha de papel na qual escrito a lápis e em francês estava o seguinte. Declaro que me mato me voluntariamente peço p: mim o cumulado e para dar a cigarreira ao meu amigo Araújo como recordação, havia também espalhados sobre a mesa 5 frascos vazios de arseniato de estricnina, comprados em diversas farmácias.

[...]

No outro dia (29) foi o enterro, modesto, mas decente, não se disse nada, pois não o podíamos mesmo fazer; e assim foi enterrado no cemitério de Pantin, assisti a tudo e só depois de a última pá de terra cair é que me vim embora. Tenho a dizer-lhe que está em coval separado que aluguei por cinco anos. Aqui findo a minha triste narrativa e peço mais uma vez me perdoe a maneira como está feita.

Todos os papéis que encontrei e cartas, tudo está fechado numa mala, o mesmo também com fatos e roupas brancas, chapéus, escovas, tudo inclusive os mais insignificantes objectos

Sobre o que o meu amigo pede os papéis não os posso mandar já pela seguinte razão, Sá-Carneiro devia ao hotel uma conta de 200 e tal francos, de maneira que como eu não posso pagar essa quantia espero que qualquer parente me envie essa importância, mesmo porque eu não disponho aqui de muito dinheiro.

Junto lhe envio diversos papéis e uma carta que ele me deixou espero que me possa dizer alguma coisa sobre este assunto.

Pedindo-lhe mais uma vez desculpa de minha mal acabada carta. Creia-me seu amigo muito obrigado

JOSÉ ARAÚJO

P. S. Não foi encontrado um sobretudo novo, um par de botas também novo e o relógio. Julgam que foram vendidos por ele. Não fui ao cônsul pedir dinheiro nenhum.

 

No décimo aniversário do suicídio do poeta, a 26 de abril de 1926, Álvaro de Campos, o heterónimo simbolista e futurista de Pessoa, o engenheiro que tinha a sensação de ser estrangeiro em qualquer parte, lembra Sá-Carneiro no poema Se te queres matar, porque não te queres matar?

 

Se te queres matar, por que não te queres matar? 

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, 

Se ousasse matar-me, também me mataria... 

Ah, se ousares, ousa! 

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas 

A que chamamos o mundo? 

A cinematografia das horas representadas 

Por atores de convenções e poses determinadas, 

O circo policromo do nosso dinamismo sem fim? 

De que te serve o teu mundo interior que desconheces? 

Talvez, matando-te, o conheças finalmente... 

Talvez, acabando, comeces... 

E, de qualquer forma, se te cansa seres, 

Ah, cansa-te nobremente, 

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, 

Não saúdes como eu a morte em literatura! 

 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! 

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... 

Sem ti correrá tudo sem ti. 

Talvez seja pior para outros existires que matares-te... 

Talvez peses mais durando, que deixando de durar... 

 

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado 

De que te chorem? 

Descansa: pouco te chorarão... 

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, 

Quando não são de coisas nossas, 

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, 

Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros... 

 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda 

Do mistério e da falta da tua vida falada... 

Depois o horror do caixão visível e material, 

E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. 

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, 

Lamentando a pena de teres morrido, 

E tu mera causa ocasional daquela carpidação, 

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... 

Muito mais morto aqui que calculas, 

Mesmo que estejas muito mais vivo além... 

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, 

E depois o princípio da morte da tua memória. 

Há primeiro em todos um alívio 

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... 

Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, 

E a vida de todos os dias retoma o seu dia... 

 

Depois, lentamente esqueceste. 

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: 

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. 

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. 

Duas vezes no ano pensam em ti. 

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, 

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti. 

 

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... 

Se queres matar-te, mata-te... 

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ... 

Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? 

 

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera 

As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? 

 

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? 

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem. 

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? 

 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 

És tudo para ti, porque para ti és o universo, 

E o próprio universo e os outros 

Satélites da tua subjetividade objetiva. 

És importante para ti porque só tu és importante para ti. 

E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? 

 

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? 

Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, 

Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? 

 

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? 

Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente, 

Torna-te parte carnal da terra e das coisas! 

Dispersa-te, sistema físico-químico 

De células noturnamente conscientes 

Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos, 

Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, 

Pela relva e a erva da proliferação dos seres, 

Pela névoa atômica das coisas, 

Pelas paredes turbihonantes 

Do vácuo dinâmico do mundo...