Análise

Fronteiras exteriores e fronteiras interiores

Concentração em Compostela o passado 1 de julho com a reivindicação 'Contra as mortes nas fronteiras'. (Foto: Arxina)
O advogado e Investigador em 'Clara Corbelhe' prosegue co ciclo de análises de 'Nós Diario'.

A recente publicação das imagens da tragédia ocorrida na fronteira espanhola de Melilha no passado dia 24 de junho coloca governo e, nomeadamente, o ministro do interior, numa situação muito comprometida, pois as imagens põem em causa a versão oficial, segundo a qual os agentes da Guarda Civil tiveram uma atuação consentânea com a lei. Polo contrário, tudo indica que houve não só as chamadas "devoluções em quente" de migrantes, como também traslado de cadáveres do território espanhol para o marroquino. Para além dos factos concretos ainda por esclarecer, este acontecimento supõe um episódio mais, por grave que ele for, da excecionalidade operante na fronteira espanhola. 

Quer dizer, estamos diante de uma excecionalidade que é, à sua vez, a normalidade de um território onde a lei e o estado de direito ficam em suspenso. Porém, não devemos pensá-lo tanto como um ato necessariamente de negligência do estado ou das forças policiais que custodiam a fronteira -sem por isso estarem isentas de qualquer responsabilidade-. A excecionalidade é, antes bem, a sua própria forma de gestão ordinária. A violência que emana do próprio estado, a violência soberana podemos dizer, acaba por formar parte da normalidade no controlo das populações sem quebranto aparente da sua natureza democrática dentro da razão neoliberal. A paz social, a ordem pública e a segurança nacional são os princípios invocados para a manutenção deste arquipélago de exceção que é a fronteira, numa mesma retórica que não deixa de apelar para a proteção dos direitos humanos.

Semelha que a violência soberana é consubstancial à forma de gerir no presente o conflito social, abrindo caminho, a cada dia que se passa, a novos terrenos

Ora bem, ao lado da fronteira exterior do estado, também coexiste outra fronteira interior, que funciona como delimitador daqueles indivíduos que têm reconhecido o estatuto de cidadania daqueles que não, e que se passa mais desapercebida por ser mais difusa. Sob os mesmos pressupostos da defesa da paz social, a ordem pública ou a segurança nacional, qualquer indivíduo pode ser desapossado materialmente dos seus direitos fundamentais se atentar contra os mesmos no interior do estado. Como acontece de uma forma brutal na fronteira exterior, a normalidade democrática convive com a excecionalidade, isto é, com a violência soberana, expandindo-se viralmente polo corpo social de um jeito perigosíssimo. 

Aqui propomos, logo, não é tanto estabelecermos uma simetria entre a gestão da população externa -as pessoas migrantes- e a gestão da população interna, quanto rastejar a lógica que a atravessa: a coexistência da normalidade e a excecionalidade. É a partir desta lógica que podemos identificar os graves riscos que encerram algumas medidas apresentadas como democráticas e mesmo socialmente avançadas nos tempos de hoje. Um exemplo bem claro podemos observá-lo na recente proposta de reforma do Código Penal apresentada polo governo de coligação ao redor da supressão do delito de sedição. Assim sendo, detrás da eventual destipificação deste tipo delitivo, que qualquer democrata deve saudar, volta a penetrar essa elástica ideia da paz pública, para se colocar no ponto de mira nos sectores sociais antagonistas.

Como alerta o advogado Brais González num recente artigo ("A reforma do delito de sedición, máis anos de prisión para a cidadanía mobilizada", Praza Pública) a desativação do delito de sedição encobre a modernização do controlo punitivo do direito de protesto através do tipo de desordens públicas, por uma banda, endurecendo significativamente as penas até chegar à entrada em prisão por simples participação numa manifestação e, por outra, incorporando uma pena de inabilitação especial e absoluta que pretende excluir aos elementos desistentes do jogo político democrático a futuro. 

Eis como se manifesta a fronteira interior, demarcando os cidadãos que participam da normalidade democrática sem a pôr em causa os consensos e legitimidades, e os não-cidadãos que devem ser expulsos da normalidade democrática porquanto são portadores de uma ameaça para a ordem instituída. Como acontece com factos de Melilha, não estamos ante efeitos negativos indesejados na gestão de quem deve estar dentro e quem deve estar fora. Numa leitura mais complexa, semelha que a violência soberana é consubstancial à forma de gerir no presente o conflito social, abrindo caminho, a cada dia que se passa, a novos terrenos, ao tempo que a própria normalidade se deteriora num horizonte onde o projeto emancipador fica também cada vez mais longe.