Análise

Do conflito sem política para a política sem conflito

Incapaz de produzir outros imaginários, o estado centra a sua agenda na gestão dos problemas sociais por meio do 'poder de polícia'. (Ilustración: Álex Rozados).
Borxa Colmenero, avogado e investigador no 'Espaço de produção crítica galega Clara Corbelhe' analiza nesta peza a xestión política da orde pública e dos problemas sociais.

As formas de gestão estatal do conflito voltam estar de atualidade. A recente condena do Julgado do Penal nº 1 de Compostela, a dous anos e dous meses de cárcere, ao ativista Chema Naia polos protestos contra o despejo do centro social okupado "Escárnio e Maldizer" na capital do país em 2017, reabre a controvérsia.

Sem pormos necessariamente em causa que a manutenção da ordem pública constitui um dos grandes objetivos do estado, o debate surge na hora de arbitrarmos quais são os mecanismos que devem gerir o antagonismo que é consubstancial à política. No estado espanhol duas são as formas adoptadas: por um lado, a neutralização do conflito da política e, por outro, o seu ocultamento. Antes de descrever estas duas tendências, diremos que nesta análise se chamará de "conflito" à substância e de "política" ao procedimento conforme ao sistema de governo (neo)liberal.

O conflito é diretamente neutralizado por meio da sua penalização, sem o estado intervir socialmente

A primeira fórmula bebe da obsessão soberana, como modo de recuperação das quebras de legitimidade e consenso, nomeadamente num contexto de crise. Incapaz de produzir outros imaginários e adesões, o estado centra a sua agenda na gestão dos problemas sociais por meio do poder de polícia, pensando fenómenos como a precariedade, a insegurança e a exclusão através de práticas punitivas que procuram a sua neutralização.

Vejamos como mostra desta lógica a escandalosa cifra de mais de 120 mil pessoas condenadas no estado por delitos contra a ordem pública na última década segundo dados do INE ‒frente às 25 mil por delitos contra a liberdade sexual ou às 30 mil por delitos de lavagem de dinheiro e contra a fazenda pública‒, levando em conta que um importantíssimo número de casos estão ligados às formas de subsistência dos sectores mais desfavorecidos ‒migrantes, sem-teto, etc.‒ e às atividades próprias dos movimentos sociais. Com esta estratégia de gestão, o conflito é diretamente neutralizado por meio da sua penalização, sem o estado intervir socialmente. Por outras palavras, as políticas públicas de carácter social próprias do estado de bem-estar são substituídas por políticas públicas de tipo criminal como solução aos problemas sociais.

Ocultamento do conflito

Ao lado desta primeira formulação, podemos observar ainda uma segunda estratégia, em solapamento, que tem passado mais desapercebida: o ocultamento do conflito da política. Nesta formulação os grandes reptos da contemporaneidade deixam de ser, formalmente, abordados desde o conflito, quer dizer, desde a relação antagónica dos distintos sectores da sociedade, para serem percebidos como problemas de mera administração de demandas. De modo que os discursos, as práticas e os procedimentos de resolução são mais os próprios do gerencialismo e da negociação empresarial que os da política tradicional. A disputa ideológica, em que ela se fundamenta, é, pois, ocultada das soluções oferecidas, vetando o confronto ideológico dos debates sobre a desigualdade, a pobreza ou a discriminação, para serem trocados por soluções tecnocráticas na procura da harmonização de interesses. Nesta perspetiva, a ordem social é, antes, construída por peritos e profissionais que fazem passar por neutra, isto é, não-política, uma posição política concreta para gerir o conflito que nunca desaparece, mas que é ocultado.

Negada a conflituosidade da gestão pública, aproximamo-nos dum estádio pós-político em que o estado não busca neutralizar o conflito, mas apenas administrá-lo, demarcando os seus limites de admissibilidade. Um exemplo significativo deste processo vivemo-lo com a expansão da denominada buro-repressão, isto é, o controlo administrativo (e sancionador) das condutas identificadas como antissociais, sem necessidade de uma intervenção forte do ius puniendi, caso da conhecida Lei Mordaça; mas também com a proliferação da vídeo-vigilância, o controlo telemático, a identificação facial, a vigilância privada, a polícia de proximidade, as ordenanças municipais reguladoras do espaço público e até nas políticas de urbanismo dirigidas à reabilitação, em realidade gentrificação, de bairros históricos.

Estas medidas, cada dia mais estendidas nas cidades, vilas e mesmo aldeias do nosso país ‒lembremos a modo de anedota a polémica em Castrelo do Val por uma regulação do trânsito de gado com sanções de 1.500 euros‒ são uma clara manifestação da negação do antagonismo da política: onde o cidadão em disputa polo exercício dos seus direitos muta num simples consumidor ou usuário dum serviço ou bem público que, voltando a Castrelo do Val, exige caminhar sem moléstias polas suas ruas, sem ter de se perguntar sobre o modelo de sociedade em que habita. Ao igual que se furta à sociedade perguntar-se como é que um moço como o Chema Naia pode acabar na prisão por participar num protesto social.