De Porto de Bois à Aljubarrota

Aljubarrota é um símbolo da liberdade de Portugal. Se o visitarmos, acharemos um moderno centro de interpretaçom no mesmo planalto de S. Jorge onde se produziu a vitória portuguesa contra a invasom castelhana. O campo de batalha foi objeto de intervençom arqueológica. Ali descobrirom uma vala comum com ossos humanos duns quatrocentos indivíduos com vestígios de lesons violentas e um sistema de defesa composto por grandes fossos e centos de covas-de-lobo. A poucos quilómetros pode ser visitado o monumental Mosteiro da Batalha, mandado construir polo rei João de Avis em memória daquele combate que assegurou a independência de Portugal. Catorze anos antes de Aljubarrota, na Galiza produze-se uma batalha que significou um ponto de inflexom para o futuro do Reino. Francisco Rodríguez analisou nas mais de mil páginas do seu apaixonante ensaio Unha etapa estelar e conflitiva de Galiza (AS-PG) as causas e as consequências de Porto de Bois (1371), onde a classe dirigente galega liderada por Fernando de Castro sofreu uma dramática derrota. Por primeira vez, a nobreza castelhana implanta-se na Galiza. Assentam-se num país conquistado pola força das armas com uma atitude despótica e dominadora. Mesmo José Garcia Oro, o principal especialista no período, considera que esta ocupaçom nobiliária "termina haciéndose colonización". Fernando de Castro, conde de Trastámara, Lemos e Sárria, e Adiantado Maior da Galiza, erige-se como protagonista da história peninsular. A sua irmá, Joana de Castro, está soterrada no Panteom Real da Catedral de Santiago. No bordo da lápide, conserva-se a inscriçom original gravada em língua galega. A sua outra irmá, Inês de Castro, simboliza a maior história de amor de Portugal, a rainha coroada após morta, cantada por Camões e Rosalía. O seu túmulo acha-se no monumental Mosteiro de Alcobaça. No braço norte da igreja, Inês de Castro; no braço sul, o seu amante, o rei Pedro de Portugal. Porém, pouco sabemos onde repousa o corpo de Fernando de Castro. Perdeu-no todo: títulos e património. Aliás, apagarom a sua memória. Faleceu no exílio por volta de 1375. Alguma fonte indica que foi soterrado na catedral de Bayonne, naquele momento domínio inglês. A lealdade de Fernando de Castro Em 1366, para se apoderar do trono, Enrique, o príncipe bastardo, invade Castela com a ajuda das Grandes Companhias de mercenários franceses. Enfrentam-se dous bandos que representam conceiçons económicas antagónicas. O bando petrista baseado na burguesia comercial e tolerante com a diversidade nacional e religiosa dos diferentes reinos. O bando enriquenho patrocinado pola alta nobreza com grandes propriedades, supremacista e antissemita. Numa fase de internalizaçom da Guerra dos Cem Anos, Pedro I recebe o apoio da Inglaterra; Enrique, da França. A estratégia atlântica da Galiza converte-a num baluarte petrista. Tenhem lugar grandes vitórias como a de Nájera. Porém, em março de 1369, Pedro I tenta fugir do castelo de Montiel, mas é descoberto e assassinado polo seu meio-irmao Enrique. Fernando de Castro, braço armado de Pedro I, cai prisioneiro. O bando enriquenho exibe a cabeça do monarca cravada numa lança.No entanto, o Reino da Galiza nom aceita o bastardo fratricida e chama por Fernando I de Portugal para assumir o reino da Galiza como herdeiro legítimo. A incursom real portuguesa produze-se três meses depois da catástrofe de Montiel. O monarca português entra por Tui e chega até A Corunha onde é recebido com grande entusiasmo. Neste passeio triunfal acompanham-no nobres galegos como Sueiro Eans de Parada, Nuno Freire de Andrade ou Alvar Peres de Castro, conde de Arraiolos, primeiro condestável de Portugal e irmao de Fernando de Castro. Mesmo o monarca luso cunha moeda com a Torre de Hércules e as letras CRU (Crunha). Como resposta, o exército do falso Trastámara ataca Braga e cerca Guimarães, momento em que o Fernando de Castro consegue fugir e liderará uma longa resistência contra a monarquia castelhana. Numa ata capitular da catedral de Santiago explicam como "os do Concelho da dita cidade se alçaram com el-rei de Portugal e com dom Fernando de Castro" contra o arcebispo trastamarista, Rodrigo de Moscoso. A nobreza e cidades galegas convertem o seu "petrismo" em "castrismo". A insurreiçom galega conclui em março de 1371 quando Enrique, o usurpador, manda a Galiza as hostes de Pedro Manrique, adiantado maior de Castela, e as de Pedro Ruiz de Sarmiento, futuro adiantado maior da Galiza. Aliás, somam-se as Grandes Companhias. Estes combatentes arrendados que vam assolar o Reino estavam dirigidos polos capitães Pierre Bègue de Villaines (Begué de Villenas), Arnaut du Solier (Arnao Lemosin) e Geoffroy Ricon (Joffré Rechon). O exército franco-castelhano primeiro apodera-se de Castro Caldelas, cujo castelo mandara construir o próprio pai de Fernando de Castro. Depois atacam Monforte de Lemos. Possivelmente continuam o seu roteiro por Sárria e, seguindo o caminho francês, cruzem o Minho por Portomarim. A Crónica de Ayala indica: "Pelearon en Galicia en un logar do dicen el Puerto de Bueyes". Aquele lugar da freguesia de Mato, na comarca da Ulhoa, chama-se Porto de Bois. Naquelas branhas, ao pé da serra do Careom, desenvolve-se uma desigual contenda entre as tropas de Fernando de Castro e o numeroso exército estrangeiro. A colonizaçom da Galiza A pesar desta lealdade inabalável, chega de jeito abrupto o final duma etapa de esplendor. Começa aqui a conquista da Galiza. Estima-se que uns quinhentos membros da nobreza galega procurarom refúgio em Portugal e depois na Aquitânia inglesa. A classe dirigente autóctone foi suplantada por uma nobreza castelhano-andaluza que se situa na cúspide civil e eclesiástica. Enrique, o novo monarca, logo paga os serviços prestados: a Pedro Ruiz de Sarmiento concede-lhe o Burgo do Faro e o senhorio de Ribadávia; a Pierre de Villaines, o condado de Ribadeu; a Pedro Enríquez, o condado de Trastámara e Lemos; a Arnaut du Solier, o senhorio de Villalpando (Zamora); ao bispo de Tui, as "villas e cotos e bienes" que pertenciam a Sueiro Eans de Parada. Esta situaçom supuxo uma forte refeudalizaçom do Reino. O desarraigo, a estorsom, o oportunismo e a impunidade caraterizam estas novas estirpes. A historiografia oficial tenta branquejar o espólio realizado polos vencedores com o asséptico "mercedes enriqueñas". Durante décadas, as classes populares aturarom terríveis abusos até desembocarem na explosom das revoltas irmandinhas. A cúpula nobiliária e as sés episcopais sofrem um alto grau de castelhanizaçom ao serem ocupadas por aristocratas de fora que monopolizam as mais altas dignidades do Reino como representantes da coroa. A consolidaçom dos Trastámara traze consigo a imposiçom da língua dos vencedores. Em 1373, Pedro Ruiz Sarmiento designa um novo alcaide para a cidade de Lugo num documento assinado em "en el palaçio del ospital" de "Puerto Marin". Em 1379, Pedro Enriquez, principia uma ata datada em Lugo com um "Yo el conde". Em Compostela, o arcebispo andaluz Lope de Mendoza mantém esta mesma prática. Conserva-se uma carta dirigida a um nobre galego onde se identifica como: "Don Lope, por la graça de Dios e de la santa Egllesia de Roma, arçobispo de Santiago, capellan mayor de nuestro señor el rey". Estas novas linhagens imponhem também a vassalagem linguística. O que hoje na sociolinguística denominam "diglossia". Como sintetiza Peres Vigo, a nossa língua passa "de trovadoresca a paródica". Deste jeito, começa a espalhar-se o estereótipo xenófobo e pejorativo da figura do "gallego". Antes de haver auto-ódio houvo ódio. Justo Beramendi considera que "a castelhanizaçom das classes dirigentes, que se inicia na Baixa Idade Meia e se completa no século XVI, introduze um novo e poderoso obstáculo para que pudesse calhar uma evoluçom paralela à de Portugal, pois acaba convertendo a etnicidade galega em marcador social negativo, um conjunto de caracteres próprios da inferioridade socioeconómica e cultural, enquanto a etnicidade castelhana funciona dentro da sociedade galega como um marcador social positivo, pois aculturar-se nela era requisito imprescindível para o ascenso e reconhecimento sociais". A vingança póstuma de Fernando de Castro Uma vez submetida a Galiza, Castela tenta invadir Portugal. No fracassado cerco de Lisboa (1384), falece Pedro Ruiz de Sarmiento. Ao ano seguinte, e a pesar da sua superioridade numérica, o exército franco-castelhano sofre uma humilhante debacle na batalha de Aljubarrota (1385). Capitães mercenários como Arnaut du Solier ou Geoffroy Ricon nom voltarám daquela nefasta empresa. Nesse contexto, John de Gante, duque de Lencastre, prepara uma armada de duzentos navios. Aquele exército de três mil soldados e mil pessoas entre serventes e marinheiros sai de Plymouth (Inglaterra) e atraca no porto da Corunha um simbólico 25 de julho de 1386. Casado com Constança de Castela, filha de Pedro I, reclamam a herança que lhes correspondem. Num dos documentos do duque refere-se a "Don Fernand de Castre" como "nostre très cher et très ame cosyn" ("o nosso mui querido e mui amado primo"). Que é como se chamam entre si os membros das casas reais europeias. "O duque e a duquesa de Lencastre entraram acougadamente na cidade de Santiago de Compostela e foram amigavelmente recebidos". No entanto, quinze anos depois de Porto de Bois, a Crónica de Froissart continua a mostrar uma Galiza ocupada militarmente por mercenários franceses. John de Gante reúne-se em Porto de Mouros (Monção) com João de Avis onde decidem o casamento duma das suas filhas com o vitorioso rei português e a ofensiva conjunta contra Castela. Invadem a meseta, mas finalmente John de Gante chega a um acordo com Juan II de Trastámara para porem fim à contenda dinástica. Assinam o Tratado de Bayonne (1388). Entre outras medidas, decidem casar a outra filha de John de Gante com o herdeiro da Coroa de Castela. A dinastia usurpadora aceita pagar uma indemnizaçom de 600.000 francos de ouro aos Lencastre, conceder perdom aos cavaleiros e escudeiros do bando legitimista e tornar os seus bens se por esta razom lhes fossem tomados. Gonçalo Oçores de Ulhoa participou na batalha de Montiel, onde também caiu prisioneiro. Já o seu tio, Gonçalo Sanches de Ulhoa, fora alferes maior de Fernando de Castro. Com a passagem dos anos, Gonçalo Oçores consegue sair da cadeia na França. Combinando armas e diplomacia recupera o seu património que fora confiscado por Gomes das Seixas e Pedro Enriquez. Por volta de 1393 inicia a construçom do castelo de Pambre. Demora cem anos em concluir-se. Gonçalo Oçores erige a torre de homenagem; o seu filho, o primeiro recinto; e o seu neto, o segundo. Uma fortificaçom que testemunha o poderio desta nobreza galegofalante. "Por minha língua neste testamento declaradas", especifica Gonçalo Oçores na declaraçom das suas últimas vontades. Nom é casualidade que o sábio Lopez Ferreiro o tomasse como protagonista dum dos primeiros romances da literatura galega contemporânea. Gonçalo Oçores ressurgiu das cinzas como ave fénix. Francisco Rodriguez salienta que nesta etapa histórica "o reino da Galiza mantinha viva e operativa uma aspiraçom estratégica própria, como expressom de protonaçom com poder político autónomo e vontade de existir, definindo os seus interesses coletivos e defendendo-os". Porto de Bois é um símbolo da liberdade da Galiza. Podia ser Leónidas, mas chamava-se Fernando de Castro. Nom era nas Termópilas, foi em Porto de Bois. Comemoraçom A iniciativa da associaçom Artábria de Ferrol, o passado 16 de março, juntaronse cinquenta pessoas de diferentes comarcas da Galiza para comemorar a batalha de Porto de Bois (A Ulhoa) para reviver os paralelismos entre Porto de Bois e Aljubarrota e a ocupaçom colonial da Galiza pola nobreza castelhana. Ataque Escampe somou-se aos atos de comemoraçom da batalha de Porto de Bois com a estrea de uma nova cançom, "Porto de Bois", que versiona um poema do autor desta mesma reportagem.