É lidar, irmão! Galiza e Portugal: muitos passos curtos para um caminho longo

A primeira vez que ouvi a expressão foi um dia que jogamos Kahoot e permiti que as equipas das minhas estudantes, em Lisboa, escolhessem o nome livremente, e não um relacionado com os temas da avaliação. "Élidarirmaum", puseram. Perguntei que era isso. Riram-se enquanto se olhavam com camaradagem, e ou não me souberam dar uma explicação ou eu não entendi. Nas semanas seguintes voltei a ouvir e ler a frase, escrita de diferentes jeitos, como um marcador discursivo sem maior significado, mas sempre acompanhada de um sorriso. Assim que procurei por cá e por lá. Parece que é uma destas coisas engraçadas que andam pelas redes, que se divulgou em especial pelas piadas, mais ou menos grossas, de um dos youtubers tugas mais famosos. É como dizer "as coisas não são fáceis". "Lidar" tem, segundo o dicionário Priberam, várias acepções, entre as quais são de destacar as duas primeiras: "trabalhar" e "andar na lida; combater, lutar, pelejar". No dicionário Estraviz, promovido por um dos linguistas mais inteligentes e produtivos que temos na Galiza, ainda se dão outros matizes interessantes, como "trabalhar com afã" e "conviver, compaginar". Copio o exemplo para esta última definição: "Devido à diferença de caracteres, não lidam bem ele e ela". Se juntarem as tonalidades dos diferentes significados compreenderão o porquê da escolha deste título. Não é lidar, entre irmãos ou irmãs (e não gémeas, mas siamesas), o verbo que melhor descreve a atribulada ligação entre a Galiza e Portugal ao longo dos séculos? Peço desculpas desde já por trazer à tona o repetido tópico da irmandade. Não o digo porque possa ser um clichê perigoso (no fratricídio está uma das fundações mitológicas mais repetidas: Caim mata Abel, Rômulo mata Remo, e assim por diante); bom, sim que o digo porque é um estereótipo perigoso, mas noutro sentido. É arriscado repetir ladainhas, slogans ou consignas se depois não trazem nada de produtivo. De pouco serve reiterar fermosas palavras se nunca ou quase nunca se acompanham de passos práticos para que a Galiza e Portugal se olhem de novo. A esperança do audiovisual Mas nem tudo pode ser pessimismo. Há passos à frente felizes; por exemplo, no audiovisual há algumas colaborações que estão a dar que falar. Imaginem a minha alegria quando vi cartazes a publicitar a série Auga seca por toda a Lisboa, ou quando vejo que HBO Portugal coloca esta coprodução como uma das estrelas das suas promoções, ou quando um amigo mexicano residente em Lisboa me fala de que esteve cativado pela série, ou quando um outro amigo alfacinha me comenta que sua avó da Serra da Estrela também dizia "auga"... As grafias em que escrevo estas linhas "parecem-se" mais às falas galegas que às próprias falas portuguesas ou brasileiras Para além desta, a nova série mais anunciada em Portugal, A Espia, também vai transcorrer em parte na Galiza. O prestigiado festival Doclisboa abriu a sua última edição com um filme galego: Longa noite. E, assim, podíamos ir contando diferentes iniciativas de cá e de lá que, embora sejam pássaros que não fazem primavera, com certeza que são ar fresco para os pulmões. No campo do audiovisual, a reivindicação mais importante é a da emissão dos rádios e das televisões portuguesas na Galiza. Quando, após a Ditadura, uma parte da sociedade galega requeriu essa recepção dos meios lusos, o papel das televisões no tempo de ócio e na vida social era muito superior ao que é na actualidade (bom, ou se calhar ao que estava a ser antes da irrupção da covid-19). Na década de 80 ou na de 90 do século XX, diretamente parecia uma utopia irrealizável. Conforme foi avançando o século XXI, a proposta pareceu alcançar mais consensos. Espanha ratificou em 2001 uma convenção internacional, a Carta europeia de línguas regionais ou minoritárias, que obrigava a isso. O acordo, tal e como se recolheu no Boletín Oficial del Estado, diz: "As Partes comprometem-se a garantir a liberdade de recepção direta das emissões de rádio e de televisão dos países vizinhos numa língua falada de maneira idêntica ou parecida a uma língua regional ou minoritária, e a não se opor à retransmissão de emissões de rádio e de televisão dos países vizinhos em dita língua". Que o tratado diga "de maneira idêntica ou parecida" safa-nos de alguns possíveis empecilhos, pois, como muito bem sintetizou o linguista Marco Neves: "se não estamos perante a nossa língua, estamos perante a mais próxima das línguas". A Mesa pola Normalización Lingüística levou esse tema às reuniões que teve ao longo dos anos com a Comissão de Expertas e Expertos que se encarregam de fazer seguimento dessa convenção, de jeito que se colocava a questão periodicamente na agenda pública. Aliás, o movimento reintegracionista conseguiu um fito simbólico muito importante com a chegada ao Parlamento galego de uma iniciativa popular, a Lei Paz-Andrade, que o parlamento votou favoravelmente de maneira unânime. No seu artigo 4 volta sobre o assunto e coloca-o como uma obrigação de trabalho para as institutições do autogoverno. Antes e depois do triunfo emblemático que foi essa Lei, há perguntas e projetos nos parlamentos para vogar também para o mesmo horizonte. Acho que não me engano quando afirmo que em todos os casos até o momento se deveu à prontidão do BNG. Em dezembro de 2007, o presidente do Governo espanhol na altura, José Luis Rodríguez Zapatero, respondeu a uma pergunta do deputado Francisco Rodríguez, quem argumentou que "do ponto de vista galego é essencial para a unidade e vitalidade da língua". Zapatero mostrou-se disposto a estudá-lo e Mariano Rajoy, na mesma sessão, também não se opôs, ainda que ficasse claro nas entrelinhas o seu receio: "É muito importante que se possa ver o português na Galiza, mas é melhor que o governo garanta condições para que os galegos estudem castelhano". Como consequência do dito pelo máximo representante da Administração central espanhola, o Parlamento galego aprovou em 2008 por unanimidade uma nova iniciativa do deputado Bieito Lobeira. Todos os partidos do Parlamento, todos, apertaram o botão do "Sim", mas... nada se fez. O tema voltou à atualidade graças ao disputado voto do senhor Rego. Quem esteja a ler isto lembra sem problema que é um dos temas do vultoso acordo BNG - PSOE. O jornal Público (o 1º em audiência online em Portugal) destacou-o com a manchete: "Acordo para governação de Espanha prevê que televisões e rádios portuguesas sejam emitidas na Galiza". Pode parecer que passaram anos desde isso, mas foi ainda nos começos deste estranho 2020. Há que dar tempo, mas esperamos com um otimismo advertido que se concretize por fim um sonho tão bonito. A recepção das TVs portuguesas na Galiza seria, na verdade, a re-recepção das TVs portuguesas na Galiza. Primeiro, porque, quando começaram a se distribuir os primeiros aparelhos de TV, que apenas entravam em alguns lares, em muitas cidades receberam-se antes os programas da RTP que os de RTVE. Disso falou alguma vez o jornalista Nacho Mirás, e pode-se consultar também na imprensa da altura, como uma suave chamada de atenção... para pedir que houvesse repetidores que garantissem ver o que se emitia desde Madri (aqui iria um emoji com rosto triste ou contrariado). Já mais cedo no tempo -tenho que dizê-lo assim, porque faz parte da minha biografia-, bem lembro a tarde em que entrou na minha casa o primeiro televisor a cores. Tudo era especial: os novos botões, o policromado que saía da tela, a nova antena que havia que pendurar lá no alto... A magia também estava em que, à parte dos dous canais espanhóis, os dias que fazia bom tempo também recebíamos a RTP. A minha cabecinha nunca terminou de entender por que é que falavam tão parecido e tão diferente. Seja como for, meus irmãos, minha irmã e eu aprendemos de cor a canção de "Sebastião come tudo, tudo...", algum dia dávamos com algum filme interessante (com legendas! que surpresa!) ou víamos a versão lusa do "Um, dois, três" com os seus "concorrentes" (lembro-me também de que me soara muito esquisita e requintada essa palavra, "con-cor-ren-tes", em troca do espanhol "con-cur-san-tes"). Enfim, que desde os meus natais Areeiros, no concelho de Ribeira, que não é para nada um terreno arraiano, era possível selecionar as TVs que emitiam de Lisboa. Ou, ao menos, era possível escolhê-las uns meses ao ano: primavera, verão, parte do outono... Isso, sempre na minha infância. Conforme foi avançando a adolescência, as TVs portuguesas foram desaparecendo do ecrã. Não chama a atenção que essas dificuldades aparecessem justamente num período -década de 90- em que se dizia que as fronteiras perdiam força numa nova Europa? A falta de informação fluída sobre a nossa vizinhança do sul contribui a que, ainda hoje, se continuem a repetir em muitos sectores da nossa sociedade tópicos lusófobos (que, seja dito, é o mesmo que dizer galegófobos). Se se quiser ter uma imagem certinha da imagem de Portugal na Galiza através das representações culturais, o melhor é consultar o livro que publicou Carlos Quiroga. Em estudos como este pode-se constatar que o início das costas viradas e dos preconceitos se produz a partir do século XVII, trás a restauração da independência ao sul do Minho. Reflita-se sobre isso. Lembro-me de um aluno meu de Caldas de Reis que ficou maravilhado aos seus quinze anos quando organizei uma excursão da sua turma à cidade do Porto. Era um aluno estudioso, mas abria a boca surpreendido na Baixa: "Ai, 'profe'! Eu não imaginava que em Portugal houvesse cidades assim! E como fala a gente...! É... É... como outro jeito de falar o galego!" Eu ria-me, feliz pelo seu fascínio, e também porque as suas palavras demonstravam que, antes da viagem, não terminava de dar por certas as minhas entusiastas aulas sobre a Lusofonia. Bom, a prática tem as de ganhar frente à teoria. Mas... se o seu pasmo era grande com a maravilhosa capital do Norte de Portugal, qual não poderia ser se baixasse até Lisboa ou aterrasse em São Paulo? Qual não poderia ser, enfim, o seu enriquecimento vital se conhecesse mais do mundo que lhe abre o galego, e não apenas pelo esforço voluntarista mas limitado de um docente? Mesmo quem lhe leve a contrária ao reintegracionismo tem de reconhecer que quem mais tem trabalhado ao longo dos anos para abrir caminhos e olhos foi essa imensa minoria que às vezes chamamos (quero pensar que sempre com afeto) de "reintegratas". Agora a AGAL (a Associaçom Galega da Língua) colocou na agenda uma reivindicação muito inteligente: o binormativismo ortográfico. Galiza teria muito para ganhar nessa hipótese, que eu apoio inteiramente. Ainda gostaria de lembrar uma cousa bastante óbvia quando se faz a prova, mas que normalmente se desconhece ou passa despercebida. Por estranho que nos pareça, as grafias em que escrevo estas linhas "parecem-se" mais às falas galegas que às próprias falas portuguesas ou brasileiras que mantêm tais convenções na escrita. Animo a ler os livros de Valentim Fagim para aprofundar mais no assunto e a pensar sobre as consequências pedagógicas dessa conclusão. Valentín Paz-Andrade, quem lhe dá nome à Lei que o nosso Parlamento aprovou ao uníssono em 2014, "para aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a Lusofonia", defendia que as aproximações tinham que ser práticas e não retóricas, que de pouco servia a idealização. O idioma, repetia ele até nos tempos mais escuros do franquismo, é uma ferramenta crucial para conseguir melhoras concretas na vida social e económica do país. Na língua, dizia, "Galiza é fonte, Portugal ponte e hoje o Brasil algo que se assemelha ao paraíso prometido". Nesta casa gostamos de Paz-Andrade e de Marx. Acreditamos em que vale mais um movimento real que uma dúzia de programas, e por isso deixamos estes parágrafos com algumas propostas para o dia a dia: solicitemos nas nossas bibliotecas (municipais, universitárias, escolares...) que adquiram livros em português; leiamos livros em português; interessemo-nos ativamente pela produção cultural da Lusofonia, da música ao cinema; se não conhecemos as particularidades ortográficas e fonéticas do que se fala em Lisboa ou em São Paulo, inscrevamo-nos em cursos e estudemo-las; apoiemos os movimentos sociais que pulam por melhorar esse relacionamento. É lidar, irmão! É lidar, irmã!