Honestidade e coragem

Em julho de 2001, introduzidos por Isaac Estraviz, vários jovens galegos partilhamos conversa e café com Carlos Casares, a menos de um ano do seu falecimento, no quiosque dos jardins públicos de Viana do Castelo, no quadro da Feira do Livro local, que convidara o presidente do Consello da Cultura para proferir umha palestra sobre literatura. Loquaz e obsequioso com o grupo galego, o escritor ourensao, no decurso desse encontro, fijo umha revelaçom que, nom por expectável, deixou de causar-me impressom. É sabido que, em setembro de 1999, Casares, primeiro durante umha conferência, e, posteriormente, por ocasiom de um congresso de escritores, tornara pública a sua convicçom de que as normas do Instituto da Língua Galega (ILG), pola sua "extravagáncia" ou "insensatez", detraíam possibilidades de difusom na Lusofonia ao idioma e à literatura da Galiza, e advogara umha reforma da norma oficial que incorporasse grafias como lh e nh. Na seqüência dessa exortaçom de Casares, que no congresso literário fora apoiada por diversos escritores, vários jornais, e especialmente La Voz de Galicia, levantando um veto de longos anos, cedêrom espaço a defensores do reintegracionismo —que, pola primeira vez, podiam publicar sem censura em galego-português no diário crunhês— e a partidários da linha oficial para confrontarem argumentos, num debate que se prolongaria na imprensa até janeiro de 2000, altura em que, repentinamente, cessou. Na intimidade daquele café de Viana, descontraído, Casares explicou-nos que fora um Fraga indignado que lhe telefonou à casa para dizer "Carlos, o que quieto está, que quieto permaneça!", e assim, de acima para baixo, sem o presidente do Consello da Cultura Galega oferecer resistência, o debate foi cerceado de vez do ámbito público. Sem naquela ocasiom oferecer resistência, nem, no sucessivo, querer reavivar a questom, segundo a confissom que ele ali nos fijo. Foi, pois, esse de Casares um rasgo de honestidade intelectual —se bem que nom de grande originalidade, dado que, entom, os reintegracionistas já acumulavam anos de ostracismo por defenderem a mesma tese—, rasgo que, porém, afinal ficaria desvalorizado pola falta de coragem cívica do nosso autor. A RAG de vez em quando lança críticas contra a política educativa do governo galego, mas isso nom a exonera da enorme responsa-bilidade que a ela também cabe no atual declínio do idioma Perda de falantes Terám agora umha réstia de honestidade intelectual e de coragem cívica os membros da Real Academia Galega (RAG) para corrigirem a orientaçom normativa do galego, numha altura, como a presente, em que todos os indicadores denunciam um fracasso rotundo da política lingüística oficial, em prejuízo do nosso idioma, que, já de forma terminal, perde falantes e se torna numha variedade regional do castelhano? Porque a RAG, através do seu Seminário de Sociolingüística, de vez em quando lança críticas contra a política educativa do governo galego, que apontam para o brutal efeito desgaleguizador da escola, mas isso nom a exonera da enorme responsabilidade que a ela também cabe no atual declínio do idioma através das suas normas e do seu dicionário, os quais, de forma injustificada, apresentam o galego à sociedade como idioma provincial menor, subordinado ao castelhano e desprovido dos recursos de umha moderna língua de cultura. É tempo de assumirmos que, para além da falta de medidas-chave de promoçom social do nosso idioma, como a imersom lingüística na escola, umha parte substancial da culpa pola recente involuçom do galego corresponde à codificaçom oficialista, que o isola das suas covariedades lusitano e brasileiro, que o menoriza frente ao castelhano e que projeta dele umha imagem etnográfica, desprestigiadora. Retificaçom Como é possível que a RAG, nesta conjuntura terminal para o nosso idioma, continue a emitir sinais evidentes, através dos seus codificadores e da sua codificaçom (assaz avelhentados), de submissom ao poder, de sectarismo e de impassibilidade? Talvez o abrupto declínio do galego seja já irreversível, mas à RAG cabe ainda (por quanto mais tempo?) a oportunidade de umha retificaçom. Para tal, com pouco dó da alma, recorrendo à prata da casa, ela poderia remeter a opiniom pública para o seu princípio codificador 4.º (até agora, desativado), e também invocar o ideário fundacional de Murguia, reintegracionista, ou, como vimos, o gesto esclarecido de Casares, ou mesmo, enfim, a figura tutelar de um Ramón Piñeiro que, em transe de responder a Rodrigues Lapa, afirmava (Grial, 1973): "Sería necio que renunciásemos a esas posibilidades de expansión cultural. En consonancia con esto, a política a seguir na fixación do galego culto debe orientarse decididamente á consolidación de todo o que hai de común no galego e no portugués". Néscio seria, decerto!