Persefoneidas

Ula é bruxa e tem um familiar, quer dizer, um gato preto que a ajuda no trabalho. A primavera não acaba de chegar e Ula decide cooperar: junta ervas, coloca o pote no trespés, consulta velhos livros para dar com o feitiço certo… Ui, sim, o conto de sempre: bruxa, gato, pote, apózema. A ver, que estamos nos tempos do Harry Potter e o Snapdragon! Calma, esta sensação só persiste um par de páginas. Como sempre, os feitiços não saem como deveram. Há erros nas quantidades, na qualidade dos ingredientes, nos extras verquidos por acidente. E chega a primavera, sim, que era o que procurava Ula, e com a estação florida chega também Vinca, o ser que não é fada nem trasno. Ula e Vinca é a primeira obra integramente pensada e elaborada por María Brenn, a quem já conhecemos como ilustradora. É um volume de banda desenhada dirigida às crianças novas. Dividida em três partes, dá conta da chegada de Vinca às vidas de Ula e Bartalán e dos segredos que com ela acarreta. O roteiro da BD é singelo e imaginativo e ganha força com os desenhos. Brenn gosta da cor e dos pormenores. A casa da Ula reborda elementos decorativos que remetem a simbologia bruxeril ou mitológica ou tradicional. A conceição do pote como útero verde creba as nossas expectativas de relato reiterativo. Os cabelos mutantes de Vinca ou o casulo hibernador não precisam de palavras que os narrem, que os escrevam. É o traço da autora que os traz a nosoutras com absoluta transparência. Ula tem-nos um ar familiar. Temos a ideia de conhecê-la de antes, de visitarmos já a sua cozinha e vermos como varria com ímpeto o lixo e a tristeza. E avançamos na leitura e caímos na conta de que o seu nariz é o mesmo nariz, não das bruxas maléficas com verruga, mas da avó Sophie, a d’O Castelo Andante de Hayao Miyazaki. Não é tão velhinha e rugosa a Ula, mas tem esse ar cuidador e atencioso da venha Sophie. E Vinca? Vinca não é outra que a natureza em ciclos. Se a mitologia grega recorre a sequestros e casamentos forçados para explicar as estações do ano, com a Perséfone como bode expiatório, María Brenn opta pola inocência infantil e a ledícia. E reclama de nosoutras o cuidado e a atenção para que o ciclo continue. A mágia é cada vez menos. Vinca concentra aquela que resta. Quem diz mágia, diz ambiente, diz natureza, diz clima em perigo. Se queremos que a primavera chegue, sempre, devemos tratar dela. A mudança climática como monstro invisível a vencer. Eis que acaba o feitiço.